terça-feira, 9 de agosto de 2011

Gravidade

- Eu tentei, juro que tentei.

- É, mas não o suficiente. Força um pouco. Para de olhar pra cima e olha em frente.

- É fácil falar, mas não consigo. Há uns 25 anos eu faria tranqüilo, mas hoje, só em pensar, me dá medo.

- Mas medo de que, exatamente?

- Do que vem de cima. A lei da gravidade ainda não foi revogada, sabia?

- Por que então você não anda por baixo das marquises?

- Enlouqueceu? Sei lá se são bem-feitas! Não conheço a estrutura delas e nem as idades. Pode haver fadiga de material, falha no projeto ou até mesmo negligência do construtor. Não vê o caso do prédio do Naya? Vai por mim que a coisa é séria.

- Estou vendo... Mas será que não dá pra você pelo menos olhar pra mim enquanto fala?

- E se cair alguma coisa, quem vai ver?

- Cair de onde? Nós estamos bem na beira da calçada e não tem nada acima das nossas cabeças!

- Ah, sempre aparece! Numa briga de marido e mulher, por exemplo, a mulher, que é sempre ruim de mira, vareja um prato na cabeça do marido, erra, o prato voa pela janela e vem cair bem nas nossas cabeças. Se eu não estiver de olho, olha a lambança feita!

- Delirante! É o único adjetivo que encontro no momento pra te descrever. Você conhece estatística? Sabe qual é a probabilidade de acontecer isso?

- Eu sei, quase nenhuma, mas estatísticas trabalham com médias, o que não quer dizer que a probabilidade não exista, e médias não são confiáveis.

- Por quê?

- Veja um exemplo que um político deu uma vez: um cara que está com a cabeça no freezer e as pernas no forno tem sua temperatura média normal, mas na prática ele vai morrer!

- Um sofisma barato!

- É verdade, mas eu prefiro ele a acreditar em probabilidades. Falando nisso, você sabe que no ano passado morreram 55 pessoas atingidas por cocos nos Estados Unidos? Morreu mais gente de cocada que em corridas de carros.

- Tá brincando?

- Sério!

- Alguma vez caiu alguma coisa na sua cabeça? Um vaso, uma lata de tinta...

- Nada, mas eu não dou mole! Fico de olho. Aliás, um dia eu estava indo à casa de uma namorada, e a medida que me aproximava do prédio, um certo vozerio ia aumentando de volume sem que eu descobrisse de onde vinha. Naquela época eu ainda não olhava pra cima. Quando cheguei bem em frente ao prédio, bum!, uma velha caiu a meio metro de mim, era a avó da menina que, já meio chegada a um Alzheimer, se jogou da marquise.

- Ela morreu?

- Não, mas se quebrou toda. Quem quase morreu fui eu, de susto. Acho foi que depois desse episódio que eu fiquei assim.

- Tá explicado!

- Pensei até em processo por tentativa de homicídio, mas depois...

- Cuidado!

- O que foi? Cuidado com que?

- É tarde, você pisou na bosta...

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Balbino

Era manhã de uma sexta feira de maio e o sol agradável do outono, ainda baixo estava lá, sozinho no céu sem nuvens. Ipanema ainda não era tomada por prédios altos colados uns aos outros, o que fazia que os horizontes fossem bem mais distantes que hoje. De onde quer que se estivesse era possível ver morros, mar, lagoa e muito céu. Sentia-se ainda o cheiro dos matos próximos, dos pães assando e do café torrando. Ouvia-se ainda os galos cantando, a algazarra dos pássaros e o tlim-tlim do bonde.

Balbino parecia ignorar tudo isso. De segunda a sexta pontualmente às oito beijava Zuleica na testa, descia os poucos degraus que separavam a varanda da calçada e, sem uma palavra, olhar fixo num ponto no chão a dois metros do seu nariz, partia rumo ao ponto do bonde que o levava ao centro da cidade para mais um dia de trabalho no banco. Zuleica ficava na porta até seu marido sumir na esquina, suspirava, fechava a porta da varanda e, resignada, iniciava a cumprir a parte que lhe cabia naquela união: cuidar da casa.

Naquela sexta, para espanto da mulher, o terno estendido sobre a cama por fazer era o de linho branco, usado somente aos domingos para os passeios que invariavelmente terminavam em um lanche na Confeitaria Colombo.

- Vai com esse terno hoje? - arriscou.

- Vou. Por favor, repasse os vincos - disse Balbino, secamente como de costume, enquanto trancava a porta do banheiro para iniciar seu ritual de asseio.

- Algum motivo especial? - perguntou ressabiada.

- Nenhum.

E mais não se conversou. O terno foi passado cuidadosamente com o capricho de sempre: um lencinho ligeiramente úmido protegendo o linho do contato direto com o ferro para evitar brilhos indesejados nos vincos e pregas.

A despedida foi a usual, mas Zuleica ficara intrigada. Tanto que fechou a porta de entrada antes mesmo que Balbino dobrasse a esquina. Ligou o rádio, parou, pensou durante uns segundos e murmurou:

- Bobagem!

Afinal, ele nunca tinha dado o menor motivo para que desconfiasse do que quer que fosse. E apagou de sua mente suas dúvidas assim que começou a tirar a mesa do café e a pensar no que faria para o jantar.

Balbino procurou minuciosamente um lugar no banco do bonde, esfregou com vigor, no assento e no encosto, um dos dois lenços que trazia e só então se sentou. Colocou o guarda-chuva entre as pernas - sempre carregava seu guarda-chuva - e pôs-se a pensar no seu dia de trabalho. Tinha muito pouco serviço, mas valorizava muito o que fazia.

A manhã no serviço foi absolutamente igual a centenas de outras anteriores, muitos carimbos e nenhuma conversa. Seus colegas estavam tão habituados com sua sisudez que sequer lhe dirigiam um olhar, e ele não se importava com isso.

Chegada a hora do almoço bateu seu ponto, e em dois ou três minutos já estava sentado à mesa em que há quase trinta anos costumava comer seu peito de frango grelhado com batatas cozidas. Problemas com uma gastrite o obrigavam a tal espartana iguaria. Mas naquele dia, talvez inspirado pelo terno de linho branco, decidiu:

- Francisco, traga-me o cardápio, por favor.

Chico - como todos os outros fregueses o chamavam - já se encaminhava automaticamente para fazer o pedido habitual ao cozinheiro, ao ouvir tão inusitado pedido - vindo de quem vinha - parou, e como se não tivesse entendido resolveu se certificar:

- Perdão senhor, o cardápio?

- Não foi isso que pedi? Por que o espanto?

Balbino passou uns cinco minutos lendo. O preço não era importante, só lia os nomes dos pratos e suas descrições. Afinal, ganhava bem, tinha economias e não tinha filhos com quem se preocupar. Foi quando num sobressalto olhou o relógio e viu que quase dez minutos haviam se passado e ele nem sequer decidira o que comer. Em dias normais, a esta hora, já estaria iniciando sua refeição. Era hora de decisões rápidas. Estalou discretamente os dedos e o garçom, ainda não refeito do susto, aproximou-se da mesa rapidamente.

- Por favor, uma dobradinha com feijão branco.

- Uma dobradinha senhor?

- É. E meia garrafa de Precioso tinto.

Se já tivesse tomado uns goles, o pobre do garçom poderia atribuir ao álcool o que ouvira e ignoraria tudo. Mas estava sóbrio e, mesmo sem acreditar muito em seus sentidos, fez o pedido.

Quando o último caldinho de feijão branco foi absorvido pela última fatia de pão francês e o último gole de vinho foi seguido por um sonoro estalido de língua, o atento e ainda boquiaberto Chico aproximou-se:

- Mais alguma coisa, senhor?

As bochechas sempre brancas de Balbino apresentavam um vermelho arroxeado estranho, que ainda mais aproximavam sua fisionomia a uma caricatura viva.

- Não, obrigado. Só a conta.

Pagou e deixou gorjeta.

Chico, tão logo o freguês saiu, correu até o esconderijo atrás da porta da cozinha tirou a rolha de uma garrafa camuflada entre uns cascos vazios e bebeu um gole farto de cachaça para se refazer do susto e comemorar por ter visto a cor do dinheiro de uma fonte até então desconhecida.

Ao se levantar da cadeira do restaurante, Balbino já havia sentido um torpor e uma pequena tonteira agradáveis tomando conta de suas reações sempre tão programadas. Agora já na calçada, arriscava até uma olhada nos joelhos das raras moças que passavam. Chegou até a concordar com Humphey Bogart sobre a humanidade estar sempre algumas doses atrasada.

Mas de repente, parado na esquina aguardando o sinal para atravessar a avenida, algo estranho começou a acontecer com seu corpo. O calorzinho relaxante proporcionado pelo vinho transformara-se rapidamente em um inferno. Passou a mão pela testa e, ao senti-la encharcada, tirou o chapéu para se abanar enquanto, com a outra mão, sacava um de seus lenços para enxugar o suor. Atrapalhado e já a essa altura um pouco nervoso, deixa cair seu inseparável guarda-chuva e imediatamente abaixa para reavê-lo. Foi aí que sentiu que a dobradinha adqüirira vida própria - e que vida! Sua barriga começava a emitir sons inauditos ao mesmo tempo que movimentos sísmicos intra-intestinais varriam toda sua extensão.

“Devem ser gases”, pensou.

Finalmente o sinal abriu e Balbino reiniciou sua caminhada de volta ao trabalho.

Gastrite não pode ser, conjecturava. “Não sinto dor no estômago. Devem ser gases mesmo. Vou arriscar.”

Não teve coragem. O sismo tinha descido perigosamente impedindo-o de aliviar os supostos gases sob pena de se consumar a tragédia. Agora só pensava em chegar ao banheiro do escritório. Era pertinho, uns cem metros, se tanto, mas tinha o elevador e seu objetivo era o sexto andar. Obcecado em chegar, caminhava com cuidado, passos rápidos mas miúdos, evitando maiores riscos.

- Ai meu Deus! - murmurou, ao ver o tamanho da fila dos elevadores.

Como fosse impossível àquela altura esperar duas ou três viagens até que conseguisse um lugar, resolveu imediatamente subir as escadas, e com extremo cuidado conseguiu superar o primeiro lance. À medida que subia, sua confiança aumentava e apressava o ritmo. Num arroubo de coragem entre o quarto e o quinto andares, tentou suplantar dois degraus com um único movimento. Foi o suficiente. A tragédia anunciada tinha se consumado. Imóvel, pernas abertas, ele perdera a batalha. O que fazer agora? Subir e encarar os colegas nem pensar. Descer muito menos. Ficaria ali para sempre? E a diarréia que não parava? E o faxineiro? Isso, o faxineiro! Não sabia quem era, mas certamente deveria ser uma pessoa humilde que por alguns trocados traria um balde de água, uns panos para limpar a si e a escada e também lhe compraria uma calça para vestir. Pronto, resolvido! Ele ficaria ali, imóvel, à espera do rapaz.

Zuleica, com os olhos inchados por três dias de lágrimas de esguicho e insônia, lamentava-se com Cora, a irmã que lhe fazia companhia desde sexta à noite:

- Viu? Não se pode confiar mesmo nos homens. Quando ele saiu para trabalhar com aquele terno branco eu bem que desconfiei. Já é segunda feira e nada de aparecer. Ninguém mais agüenta ouvir nossa voz na polícia, nos hospitais e no necrotério. Se tivesse acontecido algo, nós saberíamos. O bandido deve ter ido com alguma sirigaita para Caxambu. Ele adora aquilo lá.

- Mas Balbino sempre foi um exemplo de marido, Zu. Nunca chegou tarde, nunca bebeu, nunca fumou, nunca...

- Nunca, nunca... Mas sempre há uma primeira vez. E foi essa.

Nisso, toca o telefone, a irmã atende e após meio minuto sem abrir a boca, desliga. Com o rosto lívido fala:

- Zu... Balbino morreu. O faxineiro do prédio do banco achou o corpo hoje de manhã, na escada.

- Ai meu Deus! – Gritou Zuleica atirando-se no sofá – O que vai ser de mim agora, o que vai ser de mim...

- Espera que vou buscar um Vagostesil.

E Cora foi até a cozinha murmurando:

- Credo! O colega dele falou que ele deve ter morrido de diarréia! Podia ter sido gonorréia que era melhor...

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Miliquinhas

- Zé.

- Fala.

- Passa a caneta.

- Que caneta?

- A sua, porra!

- Carlinhos, quem tem caneta é você e ela tá no seu bolso.

- Ahn, tá... Então segura o cheque.

- Pra quê?

- Ele tá mexendo, voando...

- Carlinhos, o cheque tá paradinho, no talão, aí na sua frente!

- Mas segura, por favor.

- Tá bom. Mas não quer que eu preencha?

- Na boa!

- Quanto foi a sua despesa?

- Miliquinhas.

- Hem?

- Miliquinhas!

- Carlinhos, vai dizer que você gastou mil e quinhentas pratas com as putas?

- Nããããão! Mil e quatrocentas só, cem é gruja pra moçada.

- Carlinhos, deixa eu ver essa nota aqui!

- Pra quê?

- Me dá aqui, porra!... Olha aqui: você subiu com a menina três vezes...

- As meninas...

- Tá, as meninas. Só aí foram novecentas pratas de puta e cubículo. E o resto que tem aqui na conta de bar, você bebeu?

- Bebi.

- Fala sério, Carlinhos! Quinhentos merréis de bebida?

- Nãããão! Tem a entrada, vê aí, cem prata.

- Tá, quatrocentos merréis de bebida?

- E daí?

- Vai dizer que você bebeu uísque, vodka, vinho e coquetel de frutas?

- Coquetel de frutas é coisa de viado...

- Você bebeu isso?

- Não... Tadinhas, as meninas tavam com sede...

- É, tadinhas... E mataram a sede com vodka? E você, não bebeu nada?

- Bebi, e daí? E o que é que você entende de sede de puta?

- Realmente, nada...

- Assina essa porra desse cheque e vambora!

- Carlinhos, eu vou preencher. Quem tem que assinar é você!

- Tá certo. A ordem dos infratores não altera o produto.

- Toma, assina.

- Segura que ele tá dançando.

- Tá. Mete bronca.

- Pronto! Garranchei legal!

- Vambora, Carlinhos.

- A lá a Débora! Deixa eu me despedir dela.

- Carlinhos!... Putz...

- Tá, tá, já voltei. Vamo nessa.

- Até que enfim!

- Zé, tu sabe que eu broxei nas três vezes? Isso acontece contigo?

sábado, 30 de abril de 2011

Chuchu

- O que é que está escrevendo?

- A lista da feira de amanhã. Falando nisso, chuchu é com xis ou ceagá?

- Ceagá Flavinha, ceagá.

- Escrevi com xis, mas vai ficar assim mesmo.

- Corrige isso.

- Não! Escrevo assim há muito tempo, a Ângela é capaz de não entender com ceagá e vai me trazer caqui no lugar do chuchu.

- Contribuindo para a ignorância do povo, que vergonha! Não é melhor ensinar a ela como se escreve?

- Deixa prá lá, não complica...

- Mas afinal de contas você não fez pedagogia?

- Não debocha, Zé! E já fazem uns 15 anos que me formei, já esqueci tudo.

- Esqueceu até a concordância. É “faz 15 anos” que se diz.

- Ah, essa eu sabia, falei só pra ver se você estava ligado.

- Dói muito escutar barbaridades. Estou sempre ligado nelas.

- Eu sei, nada passa desapercebido por você.

- Despercebido. Desapercebido quer dizer desprevenido.

- Xiiii... Vai começar o furor corretivo? Por que que ao invés de ficar aí corrigindo as pessoas você não escreve um livro de gramática?

- Porque tudo que eu falo já foi escrito várias vezes e por vários autores, e por coincidência, todos eles dizem que no caso da sua última frase não se usa “ao invés de”, que significa ao contrário. O certo seria “em vez de” que indica substituição.

- Zé, como você é chato! Não sei por que você se formou em computação. Ao meu ver deveria ter feito letras. Ia ser um bom professor de português, chato pra cacete, mas bom.

- Flavinha, como é que eu vou fazer pra não ser chato com você se a sua torneirinha de asneiras insiste em jorrar besteiras? Parece até de propósito! Não é “ao meu ver” e sim “a meu ver”.

- É de propósito sim senhor! Ou você acha que eu falo besteira assim, sem parar?

- Às vezes a gente nem nota e escorrega. A língua portuguesa é meio complicada.

- Eu sei, eu sei, mas você exagera! Entre eu e você, tudo bem, mas lembra aquela vez em que você assim que chegou em São Paulo, entrou no táxi e começou a esculhambar o motorista só porque ele perguntou “onde nóis vai”? Qualquer hora você apanha!

- Flavinha, pelo amor de Deus, não abusa da minha paciência...

- Ué, por que?

- Não é “entre eu e você” e sim “entre mim e você”, e também não se fala chegar em São Paulo e sim a São Paulo.

- Grrrrr... Ainda bem que a novela já já acaba e começa o futebol. Você não vai assistir ao jogo e me dar sossego?

- Vou. Mas só que vou assistir “o jogo” e não “ao jogo”...

- Olha, eu não vejo qualquer graça no que está fazendo comigo. Vai gozar com a sua mãe!

- Mas você não pára! É “nenhuma graça” e não “qualquer graça” que se usa, e também não vou “gozar com a mamãe” porque seria incesto, e ela já está meio velhinha pra isso. No máximo posso “gozar a mamãe”.

- Ô poço de pentelho! Depois nega que é chato!

- Nega que “seja” chato...

- Ah, pára! Você sequer me dá tempo pra respirar!

- Nem sequer, o certo é nem sequer. Sequer deve se usar com negativa.

- Quer saber de uma coisa? Vai se efe ú dê é erre!

- É efe ó dê é erre, é foder que se escreve...

Hora extra

- Dona Frávia...

- Que foi Ângela?

- Eu queria pedir à senhora se eu podia servir a janta todo dia agora às sete e meia.

- Sete e meia? Mas é muito cedo! E por que isso agora? Vai estudar à noite?

- Não senhora, é que arranjei um bico por fora.

- Um bico? De que?

- Prestituta...

- Meu Deus! Prostituta, Ângela? Onde você está com a cabeça?

- Eu tenho que defender algum por fora né? A senhora sabe que o salário que me paga é pouco e eu só não saio daqui porque o pessoal é muito legal. As menina por aí tão ganhando dois mínimo...

- Eu sei, eu sei... Mas logo isso? Vamos até o seu quarto que eu não quero que a Joana ouça essas barbaridades.

- Mas a senhora deixa?

- Tá maluca menina? O problema não é a hora do jantar, é a besteira que vai fazer. E o seu namorado, o que é que vai falar quando souber?

- Ele sabe, ele é que me leva lá todo dia.

- Ave Maria, fedeu tudo... Mas leva lá aonde?

- Na praia, na Atrântica.

- Na praia Ângela? Fica junto com aquela piranhada toda?

- Não fala assim também né dona Frávia, tenho um monte de colega lá.

- E aquele monte de travesti? Fica tudo junto?

- Não senhora! No meu ponto só tem as moça.

- Ah, as moças... Mas e a polícia? Eles costumam prender prostitutas na praia.

- Tem pobrema não, o Jonga se entende com eles. Ele tem uns amigo lá.

- Seu namorado fica lá?

- Fica sim senhora. Pra tomar conta dos engraçadinho também. As vez tem uns e outro mais abusado, aí ele aparece e espanta os cara. Ele toma conta de mais umas tres menina lá.

- Vem cá, você dá algum dinheiro a ele?

- Eu e as colega damo metade pra ele que é pra ele pagá pros meganha.

- Belo de um cafifa...

- Hem?

- Nada Ângela. E o dinheiro que sobra dá pra alguma coisa?

- Dá sim senhora, compreta meu salário.

- E pra onde você vai com os... clientes?

- Tem uns hotelzinho ali por perto. Ou então é no carro mesmo. Só que não gosto muito de carro.

- Deve ser incômodo mesmo.

- Não, é que só dá boquete.

- Ângela!!!!

- E o preço é a metade da tre...

- ÂNGELA, CHEGA!!!!

- Sim senhora. Mas a senhora deixa?

- Não! Quanto você quer de aumento pra parar com isso?

- O Jonga não vai gostar...

- Esquece o Jonga. Além de tudo você se cansa muito com isso. Diz quanto.

- Até tô meio cansada sim senhora... Então se a senhora pagar dois salário eu paro.

- Então espera que eu vou ligar pro Zé pra falar com ele sobre isso.

- A senhora vai falar com seu Zé Carlo que eu sou prestituta?

- Não Ângela é só sobre o seu aumento, espera...

- Sim senhora.

- Alô, Zé? Onde você está?... Tá bom, tá bom, não precisa dizer. Escuta, a gente precisa dar um aumento pra Ângela... Pra dois salários... Hem? Uai, é o que se paga... Mas... Tá bom, então chega mais cedo que o jantar é às sete e meia. Um beijo.

- Falou com ele sobre o aumento?

- Falei, falei. Olha, toma aqui essa caixa de camisinhas do Zé, que ele não usa mesmo... E se cuida menina!

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Juventude

- Flavinha, corre aqui!
- Que foi, que foi?

- Olhaqui, um fio branco na minha sobrancelha!

- Pô Zé, me dá um susto desses só por isso?

- Começou.

- Começou o que?

- O meu processo definitivo de envelhecimento. Agora não tem mais jeito. Ainda está sem roupa?

- Estava passando meu vestido. Deixa que eu tiro esse cabelo com a pinça.

- Com pinça? Vai doer, corta com a tesourinha.

- Deixa de frescura, não dói nada. Eu me depilo toda e não dou um ai.

- Vocês foram programadas pra isso, devem ter uma anestesia natural. Aliás você tá parecendo um cheiene.

- Um o que?

- Um índio cheiene, daqueles de filme de caubói.

- Por que?

- Olha só, depila tanto isso aí que fica só com uma tirazinha tapando. Igualzinho ao índio.

- Isso aí? Isso é jeito de falar?

- Tá, desculpe. Mas que parece, parece. How!

- Para de bobagem. Chega aqui perto do espelho pra eu tirar esse estorvo da sua juventude.

- Sem gozação... Ai!

- Quer que eu passe mertiolate?

- Tolinha. Será que tem mais? Vê aí por trás se tem algum cabelo branco.

- Tem não. Por enquanto.

- Ruga eu não tenho, ainda bem.

- Tem sim. Aqui ó...

- Tira essa mão fria daí! Falar nisso, você acha que meu saco aumentou?

- Não, aliás você anda cada vez mais sem saco pra certas coisas.

- É sério, aumentou?

- Não Zé, por que isso?

- Diz que quando a gente fica velho o saco aumenta.

- Tá meio pancada... Ou será que são suas gatinhas que andam reclamando?

- Que gatinhas Flavia? Sabe que sou um homem sério e fiel...

- Hum hum... Sem comentários.

- Não gostei da ironia. Tira a mão...

- Deixa pra lá. Mas até que eu acho você vai ficar bem, grisalho.

- Grisalho, eu?

- É, ou você acha que seu cabelo vai ficar pra sempre assim, dessa cor? Tem sorte que ainda não ficou careca...

- Vira essa boca pra lá. Bom, vou tomar meu banho que... Ei, o que é isso?

- Isso aqui na minha mão é a prova que ainda não está tão velhinho assim, vem cá.

- Peraí Flavinha...

- Vem, no chuveiro é gostoso.

- O ferro vai queimar seu vestido...

- Tem outro queimando mais aqui.

- Tenho hora de chegar...

- Tinha. Ou você acha que eu vou desperdiçar esse magnífico arroubo de juventude que ainda lhe resta?

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Divina Criatura

- Divina criatura!

- Tu já tá meio zureta, né?

- Deixa isso prá lá, o que importa é a sua presença!

- E me larga! Cheio de mé tu fica grudento.

- É que você me causa furores nunca dantes por mim experimentados...

- Vai pastar, professor. Tu sabe que teu figo num güenta mais um gato pelo rabo e continua enchendo os cornos...

- Fígado, minha princesa, fígado! E o importante entre nós não são os órgãos internos e sim os externos, os meus mais externos que os seus.

- Fica dando bobeira com cana que tu acaba de pé junto.

- Vem cá, minha flor, aquece o corpo de quem te quer tanto...

- Já falei prá me largar. Tá com grana hoje?

- Prá você, sempre!

- Carca fora, quarta-feira! Tu já me deu beiço de montão!

- Toma mais um...

- Isso não é beiço, é lábio. Sério, tem algum prá me dar aí?

- Toma, amor de minhápica, é tudo seu!

- Qué isso fessor: quatrocentos contos?! Onde foi que arrumou essa bufunfa toda?

- Não interessa, é tudo seu.

- Mas não é tanto assim! Tu me deve uns duzentinho só.

- É por hoje também e com direito a bônus. Tomei um remedinho que o médico me receitou e já estou no ponto. Hoje não broxo, vou te dar uma canseira.

- E tu vai guentar botar no meu bônus? Com essa manguaça toda tu tá é no ponto de vomitar em cima de mim!

- Bônus não é ânus, bônus é um prêmio extra, uma gorjeta. E não fale assim só porque estou alegre, mais que o habitual. Estou sentindo o calor me arder o rosto, me tomar o corpo e não vejo a hora de dividi-lo com meu anjo núbio.

- Cuidado com essas paradas. Dizem que faz mal com bebida...

- Sem contra-indicações, disse-me o esculápio.

- Quem?

- O médico.

- Tu quer mesmo subir pra cabine?

- Minha deusa etíope, só venho aqui neste lupanar por sua causa e é claro que vamos subir! Aliás, tudo vai subir hoje!

- Xiii... Tá danado! Tu vai é me dar uma mão-de-obra dos inferno! Mamado desse jeito e querendo bancar o garanhão, vai dar merda. Tu não quer ir ao banheiro antes? Enfia o dedo na goela e resolve o primeiro poblema.

- Problema, minha estátua de ébano, problema. Mas qual é o outro? Têm mais problemas?

- Tem sim, e tu sabe! Essa coisa mole aí me deixa com dor na língua e não resolve nada!

- Hoje não, já falei! Vai é te dar prazer, e muito.

- Falou então. Seja lá o que deus quiser, já tá pago mesmo... Vai subindo que eu vou dar uma lavada nas coisas.

- Só água, para manter o buquê.

- Heim?

- Só agua. Pronto.

- Tá, vai indo que eu já vou.

...


- Ôpa, diz aí que tal remédio é esse! Nem cheguei e tu já tá de sentinela? Nunca vi esse troço duro na minha vida!

- Não falei, minha bonequinha de pixe? Gostou?

- Amei! Deixa eu...

- Senta logo, aproveita.

- Que pressa!

- De costas, quero ficar vendo essa magnífica bunda saltitando.

- Ô véio tarado! Deixa eu ajeitar... Assim?

- Tá ótimo. Agora mexe, neguinha safada...


...


- Aiiii! Fessor, cansei. Esse remedinho é bom mesmo! Seu bilau não baixa não?... Professor... Professor...


Amália

- O próximo!

- É eu!

- Seu nome, por favor.

- Adilsom.

- Com “ene”?

- Não, senão fica Nadilsom, né?

- No final, senhor.

- No final de que? Eu já esperei tanto tempo aqui nessa fila e vou ter que voltar pro final?

- Perguntei se o seu nome tinha “ene” no final.

- Ah, não! Com “mê”.

- O que mais?

- Mais nada, ué. “A”, “dê”, “i”, “lê”, “si”, “o”, “mê”.

- O nome, senhor. Nome completo.

- Ah, sim. Adilsom dos Santos Bezerra.

- Endereço?

- De onde?

- Da sua residência.

- Qual delas?

- Como qual delas? O senhor tem mais de uma?

- Tenho duas. Uma em São Gonçalo e outra em Caxias.

- Mas onde o senhor mora?

- Nas duas. De segunda a quinta em Caxias e de sexta a domingo em São Gonçalo. A senhora sabe, né? Uma é de lei, onde moro com minha mulher de papel, e a outra é contrabando.

- Mulher de papel, como assim?

- É. Casei com a Neusa, e tenho a Eliete de amália.

- O senhor quer dizer amásia, não é?

- Isso, isso.

- Então me dê o endereço da sua esposa, a do papel.

- Ih, esse não sei não! É numa favela nova, nem sei se tem nome. Mudei faz pouco.

- Então o da outra.

- Que outra?

- Da amásia, seu Adilsom...

- Não é outra não, é a mesma desde oitenta e sete.

- Eu sei, seu Adilsom, diga o endereço dela, por favor.

- E como é que a senhora sabe que eu estou com ela esse tempão todo?

- Quem disse que eu sei, seu Adilsom? Eu só quis dizer que sabia que era da dona Eliete...

- Sei lá, dona! Esses computador tem coisa que só o cão sabe!

- O endereço, por favor. Olha o tempo!

- Tá chovendo, a senhora vai ter que...

- O tempo do relógio! Eu quero o endereço!

- Calma, eu num tava entendendo! É rua C, casa 45, quadra 7, lote 2.

- Bairro.

- Jardim Liberato.

- Cidade?

- Caxias.

- CEP.

- Hem?

- O número do CEP da casa.

- Sei o que é isso não...

- Deixa, eu procuro depois. O senhor nasceu onde?

- Em casa, eu e meus irmão tudo. A parteira foi a mesma que...

- A cidade, seu Adilsom!

- Ah, num foi na cidade, foi na roça mesmo.

- O município, então.

- Sei não.

- O nome da cidade mais perto então.

- Perto de onde?

- De onde o senhor nasceu.

- Coxixola.

- O senhor tem certeza que existe essa cidade?

- Bom, até eu vir aqui pro Rio ela existia.

- E onde ela fica?

- Pertim de onde eu nasci.

- Eu sei, mas em que estado fica?

- Paraíba.

- Sexo masculino...

- Muito macho sim senhora! Tenho sete fi...

- Por favor, seu Adilsom! De quanto o senhor precisa?

- Preciso pra que?

- O empréstimo! De quanto é?

- Uai, é tão caro assim pra eu precisar empréstimo?

- Caro o que, seu Adilsom?

- Pra entrar no banheiro.

- Que banheiro?

- Vocês não têm banheiro aqui?

- Tem, claro! É ali atrás, mas não entendo o que isso tem a ver com o empréstimo.

- Eu também não. Eu queria só perguntar onde era o banheiro, mas a senhora veio logo querendo saber um monte de coisa... Eu quero mesmo é dar uma boa barrigada. Dá licença que tá brabo, depois a gente conversa do tal do empréstimo.

Pardieiro

- Que pardieiro!

- O que é isso?

- É uma casa velha, em ruínas.

- Pô, mãe, você só vem aqui prá me esculhambar?

- Olha o vocabulário!

- Qual?

- O seu.

- E o quê que eu falei de mais?

- Isso de esculhambar. É chulo.

- Chulo?

- É. Vulgar, de baixo calão.

- Calão?

- Denise, você não estuda?

- Estudo prá ser arquiteta, não decoro dicionário, mãe.

- Ai, minha filha, não falei nada de extraordinário, só palavras de uso corrente.

- Corrente há 40 anos. De mais a mais, esculhambar também é de uso corrente.

- Mas é vulgar.

- Tá bom, mãe. Mas a que devo a honra da sua visita?

- Vim ver como você estava vivendo. Não liga mais, quando eu ligo parece que quer sempre desligar rápido, enfim, vim saber de você, minha filha. Despenquei lá de Vassouras só para saber como voc ...

- Até parece que é longe pacas do Rio... Mas eu acho que foi bom você vir mesmo. Descola uma graninha prá sua filhinha, vai. Cinco pilas.

- É só pra isso que eu sirvo? Já acabou sua mesada?

- Não, mas não dá pro que eu quero.

- Toma dez, mas vê se economiza!

- Mãe, são cinco mil, não são cinco reais!

- Cinco mil? Mas pra quê tanto? O que você quer comprar? O que foi que você fez?

- Calma, mãe.

- Calma nada! O quê você fez?

- Trepei mal...

- Heim?

- É, mãe... é prá um aborto. Vapt-vupt!

- Aaah...

- Mãe... Mãe!... Manhê, o que é que você tem?!

- Me dá um copo d’água, rápido!

- Que foi, mãe?

- Você ainda pergunta?!

- Claro! Não sei o que é que você tem...

- Me dá essa água aqui.

- Toma. O que é isso que vai tomar?

- Um calmante! O que poderia ser?!

- Sei lá... Tá nervosa por quê?

- Você ainda pergunta?!

- Já perguntou isso antes...

- Você me diz na cara que quer fazer um aborto e que... que... trepou mal, e quer que eu fique calma?

- Só por isso?

- Como só por isso? É um aborto, um crime, e além do mais você não é mais virgem...

- Sou sim, mãe, eu não falei que trepei mal? Foi só nas coxas.

- Denise!

- Que foi? Você não tava preocupada com a minha virgindade?

- Eu não quero saber de detalhes!

- Tá bom, tá bom... Mas você vai dar a grana?

- Não! Quero saber quem é ele!

- Ele quem?

- Seu marido!

- Que marido?

- O pai do seu filho!

- Ele não é meu meu marido. Já falei que foi só uma tre...

- Denise, pára! E esse sujeito não vai assumir a criança?

- Claro que não! Ele já se mandou faz tempo...

- Quer dizer que nem pai essa criança vai ter?

- Mãe, não vai ter nem criança! Se você não me der a graninha, eu vou fazer num açougueiro qualquer.

- Não diga isso! Pelo menos diga quem é o pai, quem foi que... que...

- Botou nas minhas coxas?

- Denise!

- Tá, foi o Adalberto, o negão da faxina lá na faculdade.

- Negão da faxina?! E você teve coragem?

- Não, não tive coragem mãe. Era descomunal! Por isso ainda estou virgem...

- Denise!

Derrières et molières

- Como é que a gente pede isso?

- E eu sei lá? Bem que avisei que vir aqui era uma furada!

- Ih benhê, tem que aprender, afinal agora a gente é emergente.

- Pára com esse papo, a gente só se mudou ontem e você já se acha emergente! Não sou porra nenhuma! Bem que eu queria ficar lá no Rancho Novo mesmo porque essa merda de dinheiro da mega-sena só trouxe confusão até agora. Domingo tinha até fila pra entrar lá em casa! Parecia que eu era o Chico Xavier dando consulta.

- Fala baixo, olha o palavrão, olha o vexame! Isso aqui é um restaurante fino!

- E que adianta ser fino se a gente não consegue saber o que tem pra comer?

- Calma, chama o tal do métre que ele explica.

- O que é isso?

- É aquele ali olhando pra gente. É uma espécie de chefe dos garçons, sei lá...

- Ô da gravata, chega mais!

- O que é isso, bem? Chama o métre direito!

- Ah, ele entendeu, tá vindo.

- Pois não, senhor?

- Explica esses breguetes aqui. Traduz que a fome tá braba e não dá pra entender mer..., quer dizer, coisa nenhuma.

- Bom, aqui temos as entradas.

- Onde?

- Aqui, senhor.

- E pra que que eu vou querer entrada se a gente já tá dentro?

- Não é isso, senhor. A entrada faz parte do nosso menu degustação.

- Ah, é de comer?

- Sim, senhor. Aqui temos as entradas frias, por exemplo a “terrine de poullet aux herbes avec émulsion de sauce crustacés à l’huile de noix”.

- Caralho!

- Ribamar!

- Desculpe, mas é muito nome esquisito. E o que é esse palavrão todo?

- São filezinhos de frango com ervas temperados com uma emulsão de molho de camarões ao azeite de nozes. Temos também “spirale de foie gras au chutney de...”

- Pára, pára! Vou ficar no franguinho. Tá bom pra você também, Rê?

- Eu queria um peixe...

- Não complica, Rê!

- Perdão, senhor, mas a senhora pode pedir um peixe como “pièce de resistence”.

- Hã?

- Perdão, senhora, prato principal. Temos este aqui que é um filé de dourado grelhado com bolo de batatas ao queijo de cabra.

- Ah, ótimo! Mas o senhor podia falar isso em francês? Achei tão bonito...

- Pois não: filet de dorade avec galette de pomme de terre au fromage de chèvre.

- Lindo...

- E o senhor, prefere carne ou peixe?

- Vou numa carninha mesmo. Tem bife com fritas?

- Ribamar, bife com fritas aqui?

- Ué, que que tem?

- Senhor, posso sugerir um “coeur de filet de boeuf à la moelle et ciboulette”, que é a parte central do filé-mignon grelhada com tempero de tutano e cebolinhas.

- Detesto cebola!

- Posso sugerir uma carne de caça?

- Manda!

- É o “émincé de rognon de cerf...”.

- Pode ir traduzindo...

- Perdão. Rim de veado fatiado com molho rosé.

- Esse mesmo! Rê, vou comer um viado!

- Fala baixo, Riba!

- Perdão, senhor, e a sobremesa?

- Depois a gente escolhe! Cansei de ouvir derriérres e moliérres.

- E para beber?

- Um chopinho pra mim e um grapete pra ela.

- Perdão, senhor, não temos chope e nem grapete. Quer que lhe traga a carta dos vinhos?

- Carta?

- Sim senhor, a nossa seleção de vinhos. Temos os melhores franceses aqui.

- Ah, não! Lá vem você com esses derriérres de novo, me poupe. Já vi uns nomes de vinhos franceses e são piores que os pratos.

- Nós temos vinhos de outras procedências também, igualmente excelentes.

- Não tem Sangue de Boi?

- Não senhor.

- Então escolhe um pra mim. A madame aqui não bebe, traz um guaraná pra ela. Guaraná vocês têm, né?

- Temos sim senhor, com sua licença.

- Rê, reparou quantas vezes o cara pediu perdão?

- É educação, Riba.

- É fino pedir perdão?

- É, Riba, é...

- Então aquelas velhas broacas lá do Rancho Novo, inclusive a tua mãe, devem ser finas pra cacete.

- Por que?

- Vivem lá na igreja pedindo perdão...

- Ai Riba, que maldade!

- Ih! Olha só o baldão de gelo que estão trazendo, será que é tudo isso só pro seu guaraná e o meu vinho? Será que tá tudo quente?

- Espera. Não faz nada porque os garçons vão servir e a gente vê pra que é o gelo.

- Senhor, seu vinho. É um Merlot 98 Carneros, um vinho americano da mais alta qualidade.

- Americano? Mas aqui não é tudo francês?

- Não, senhor. Os vinhos, nós temos de todas as procedências, e esse merlot é absolutamente fantástico.

- Não tá encalhado? 98 não é o ano de fabricação?

- É, senhor, mas os vinhos mais velhos normalmente são os melhores, e 98 foi uma safra excelente nos Estados Unidos, que já estão fabricando vinhos comparáveis aos melhores franceses.

- Já ouvi falar nisso...

- Da safra?

- Não, da velhice dos vinhos. Mas vai lá, mete bronca!

- Posso abrir, senhor?

- Claro!

- Com licença...

- E o balde de gelo, o que eu faço com ele?

- Ah sim, senhor. É para manter a temperatura do seu vinho que já veio climatizado a 13 graus da nossa adega.

- Você vai despejar todo o vinho aí? Vai ficar aguado...

- Não, senhor. Apenas a garrafa vai ficar acondicionada no balde. Com licença, a sua taça.

- Só isso? Pode botar mais! Na régua!

- Perdão, senhor, não vai provar?

- Provar o que? Uma gotinha de vinho dessas não dá nem pra encher o buraco do dente!

- Riba, bebe isso logo. É chique o homem dar esse golinho antes e depois fazer que sim com a cabeça pra depois o métre colocar mais. Eu vi na novela.

- Tá bom... Pronto seu métre, manda ver!

- Pois não senhor.

- Rê, tô mortinho de fome. Será que o franguinho vai demorar?

- Calma Ribamar, curte o vinho, o ambiente, a música...

- Será que o pianista não sabe nada do Zezé de Camargo?

- Acho que não. Aqui é só música de bacana, estrangeira, tipo Julio Iglésias, Elvis Prestes, Maicom Jéquisson...

- Música de boiola.

- Fica quieto que acho que nossa comida tá chegando.

- Boas falas!

- Com licença senhor, sua entrada.

- Mete bronca!

- Olha que lindo, Riba!

- Lindo o que?

- O prato.

- O prato é lindo, mas o que tem dentro tá feio. Pouco pra dedéu!

- Riba, isso é só a entrada, é pouco mesmo, mas a decoração é linda!

- Tá, é linda, minha fome também é linda, é tudo lindo... Parece o Caetano!

- Não enche!

- Pronto, acabei. Vou pedir pro cara trazer o meu rango logo.

- Calma, a péce da registrance já vem, e de mais a mais ele não vai trazer enquanto eu não terminar.

- Até você com esse francês agora? Então anda logo!

- Tem que aprender, né?

- Já acabou de comer esse pinto?

- Tô acabando, e não é pinto, é pulê. E de mais a mais é chique comer devagar.

- Chique!... Agora vou ter que aturar isso, tudo tem que ser chique...

- Ah, faz um esforço, meu bem. Procura olhar as pessoas em volta, presta mais atenção nas novelas...

- Que novela, mulher, põe a cabeça no lugar! Acho que esse dinheiro te pirou. Acabou?

- Acabei.

- Garçom, vem cá!

- Olha a grossura, Riba... E não é garçom, ele é métre, já te falei!

- Pois não, senhor.

- Pode tirar aqui e trazer o resto da comida.

- Pois não, senhor.

- Ah, uma coisa: qual é seu nome? Eu me enrolo todo com esse negócio de mitre, garçom... Prefiro te chamar pelo nome.

- Meu nome é Ribamar, senhor.

- Xará! Vai dizer que é maranhense também?

- De São Luís, senhor.

- Sabia! Essa corzinha, essa cabecinha...

- Meu bem, deixa o métre trabalhar...

- Tá bom, vai lá conterrâneo!

- Com sua licença, senhor.

- Tinha que dizer das suas, né Riba?

- Das minhas o que?

- Chamar o métre de xará, dar intimidades...

- Intimidades? Só porque chamei o cara de conterrâneo e xará?

- Tá, esquece. Os pratos vêm aí.

- Ôba! Já tô com o bucho dando nó.

- Com licença, senhora, seu peixe.

- Obrigada.

- Com licença, senhor, sua carne de caça.

- Meu viadinho? Maravilha!

- Bom apetite.

- Falou xará!

- Riba...

- Que foi Regina?

- Pára de olhar pra perua aí do lado e vê só o tamanho do prato.

- Já vi, é grande, né?

- Riba, pára de olhar e vê só a quantidade de comida que veio...

- Puta merda!

- Shhhhh! Menos...

- Menos é o cacete! Esses caras tão pensando que eu sou passarinho?

- Tá pouco, né Riba?

- Pouco? Só pode ser sacanagem!

- Espera, pode ser que venha mais.

- Que mais que nada, essas titicas já vieram no prato!

- Vai ver que a gente pode repetir!

- Vou perguntar: ô conterrâneo, chega mais!

- Pois não, senhor?

- Xará, a gente pode repetir a comida?

- Senhor, as quantidades são essas que vêm servidas, se o senhor quiser repetir, o prato será computado na nota.

- Ô cara, como é que um maranhense como você trabalha numa birosca dessas? Você enche seu pandulho só com isso? Hem? Responde xará!

- Senhor, não posso fazer nada. São as normas da casa.

- Normas porra nenhuma, isso aqui é um assalto mesmo. Traz a nota e rápido!

- Mas o senhor não vai nem provar o prato?

- Já provei! Tem gosto de bosta de gato.

- Benhê, você já comeu bosta de gato?

- Num sacaneia você também! Traz a nota, xará.

- Desculpe, senhor, com licença.

- Tem toda.

- Que coisa né, bem? Nem eu que como pouco acreditei.

- Você come pouco? Só rindo! Bem que eu falei que era a maior furada vir aqui. E agora? Tô com fome...

- Benhê, promete que não vai me gozar se eu sugerir uma coisa?

- Vai lá, prometo.

- Vamos lá no Rancho Novo comer aquela dobradinha do Severino? Hoje é dia...

- Chupeta! Até que enfim você disse alguma coisa que preste, fechado!