segunda-feira, 13 de junho de 2011

Balbino

Era manhã de uma sexta feira de maio e o sol agradável do outono, ainda baixo estava lá, sozinho no céu sem nuvens. Ipanema ainda não era tomada por prédios altos colados uns aos outros, o que fazia que os horizontes fossem bem mais distantes que hoje. De onde quer que se estivesse era possível ver morros, mar, lagoa e muito céu. Sentia-se ainda o cheiro dos matos próximos, dos pães assando e do café torrando. Ouvia-se ainda os galos cantando, a algazarra dos pássaros e o tlim-tlim do bonde.

Balbino parecia ignorar tudo isso. De segunda a sexta pontualmente às oito beijava Zuleica na testa, descia os poucos degraus que separavam a varanda da calçada e, sem uma palavra, olhar fixo num ponto no chão a dois metros do seu nariz, partia rumo ao ponto do bonde que o levava ao centro da cidade para mais um dia de trabalho no banco. Zuleica ficava na porta até seu marido sumir na esquina, suspirava, fechava a porta da varanda e, resignada, iniciava a cumprir a parte que lhe cabia naquela união: cuidar da casa.

Naquela sexta, para espanto da mulher, o terno estendido sobre a cama por fazer era o de linho branco, usado somente aos domingos para os passeios que invariavelmente terminavam em um lanche na Confeitaria Colombo.

- Vai com esse terno hoje? - arriscou.

- Vou. Por favor, repasse os vincos - disse Balbino, secamente como de costume, enquanto trancava a porta do banheiro para iniciar seu ritual de asseio.

- Algum motivo especial? - perguntou ressabiada.

- Nenhum.

E mais não se conversou. O terno foi passado cuidadosamente com o capricho de sempre: um lencinho ligeiramente úmido protegendo o linho do contato direto com o ferro para evitar brilhos indesejados nos vincos e pregas.

A despedida foi a usual, mas Zuleica ficara intrigada. Tanto que fechou a porta de entrada antes mesmo que Balbino dobrasse a esquina. Ligou o rádio, parou, pensou durante uns segundos e murmurou:

- Bobagem!

Afinal, ele nunca tinha dado o menor motivo para que desconfiasse do que quer que fosse. E apagou de sua mente suas dúvidas assim que começou a tirar a mesa do café e a pensar no que faria para o jantar.

Balbino procurou minuciosamente um lugar no banco do bonde, esfregou com vigor, no assento e no encosto, um dos dois lenços que trazia e só então se sentou. Colocou o guarda-chuva entre as pernas - sempre carregava seu guarda-chuva - e pôs-se a pensar no seu dia de trabalho. Tinha muito pouco serviço, mas valorizava muito o que fazia.

A manhã no serviço foi absolutamente igual a centenas de outras anteriores, muitos carimbos e nenhuma conversa. Seus colegas estavam tão habituados com sua sisudez que sequer lhe dirigiam um olhar, e ele não se importava com isso.

Chegada a hora do almoço bateu seu ponto, e em dois ou três minutos já estava sentado à mesa em que há quase trinta anos costumava comer seu peito de frango grelhado com batatas cozidas. Problemas com uma gastrite o obrigavam a tal espartana iguaria. Mas naquele dia, talvez inspirado pelo terno de linho branco, decidiu:

- Francisco, traga-me o cardápio, por favor.

Chico - como todos os outros fregueses o chamavam - já se encaminhava automaticamente para fazer o pedido habitual ao cozinheiro, ao ouvir tão inusitado pedido - vindo de quem vinha - parou, e como se não tivesse entendido resolveu se certificar:

- Perdão senhor, o cardápio?

- Não foi isso que pedi? Por que o espanto?

Balbino passou uns cinco minutos lendo. O preço não era importante, só lia os nomes dos pratos e suas descrições. Afinal, ganhava bem, tinha economias e não tinha filhos com quem se preocupar. Foi quando num sobressalto olhou o relógio e viu que quase dez minutos haviam se passado e ele nem sequer decidira o que comer. Em dias normais, a esta hora, já estaria iniciando sua refeição. Era hora de decisões rápidas. Estalou discretamente os dedos e o garçom, ainda não refeito do susto, aproximou-se da mesa rapidamente.

- Por favor, uma dobradinha com feijão branco.

- Uma dobradinha senhor?

- É. E meia garrafa de Precioso tinto.

Se já tivesse tomado uns goles, o pobre do garçom poderia atribuir ao álcool o que ouvira e ignoraria tudo. Mas estava sóbrio e, mesmo sem acreditar muito em seus sentidos, fez o pedido.

Quando o último caldinho de feijão branco foi absorvido pela última fatia de pão francês e o último gole de vinho foi seguido por um sonoro estalido de língua, o atento e ainda boquiaberto Chico aproximou-se:

- Mais alguma coisa, senhor?

As bochechas sempre brancas de Balbino apresentavam um vermelho arroxeado estranho, que ainda mais aproximavam sua fisionomia a uma caricatura viva.

- Não, obrigado. Só a conta.

Pagou e deixou gorjeta.

Chico, tão logo o freguês saiu, correu até o esconderijo atrás da porta da cozinha tirou a rolha de uma garrafa camuflada entre uns cascos vazios e bebeu um gole farto de cachaça para se refazer do susto e comemorar por ter visto a cor do dinheiro de uma fonte até então desconhecida.

Ao se levantar da cadeira do restaurante, Balbino já havia sentido um torpor e uma pequena tonteira agradáveis tomando conta de suas reações sempre tão programadas. Agora já na calçada, arriscava até uma olhada nos joelhos das raras moças que passavam. Chegou até a concordar com Humphey Bogart sobre a humanidade estar sempre algumas doses atrasada.

Mas de repente, parado na esquina aguardando o sinal para atravessar a avenida, algo estranho começou a acontecer com seu corpo. O calorzinho relaxante proporcionado pelo vinho transformara-se rapidamente em um inferno. Passou a mão pela testa e, ao senti-la encharcada, tirou o chapéu para se abanar enquanto, com a outra mão, sacava um de seus lenços para enxugar o suor. Atrapalhado e já a essa altura um pouco nervoso, deixa cair seu inseparável guarda-chuva e imediatamente abaixa para reavê-lo. Foi aí que sentiu que a dobradinha adqüirira vida própria - e que vida! Sua barriga começava a emitir sons inauditos ao mesmo tempo que movimentos sísmicos intra-intestinais varriam toda sua extensão.

“Devem ser gases”, pensou.

Finalmente o sinal abriu e Balbino reiniciou sua caminhada de volta ao trabalho.

Gastrite não pode ser, conjecturava. “Não sinto dor no estômago. Devem ser gases mesmo. Vou arriscar.”

Não teve coragem. O sismo tinha descido perigosamente impedindo-o de aliviar os supostos gases sob pena de se consumar a tragédia. Agora só pensava em chegar ao banheiro do escritório. Era pertinho, uns cem metros, se tanto, mas tinha o elevador e seu objetivo era o sexto andar. Obcecado em chegar, caminhava com cuidado, passos rápidos mas miúdos, evitando maiores riscos.

- Ai meu Deus! - murmurou, ao ver o tamanho da fila dos elevadores.

Como fosse impossível àquela altura esperar duas ou três viagens até que conseguisse um lugar, resolveu imediatamente subir as escadas, e com extremo cuidado conseguiu superar o primeiro lance. À medida que subia, sua confiança aumentava e apressava o ritmo. Num arroubo de coragem entre o quarto e o quinto andares, tentou suplantar dois degraus com um único movimento. Foi o suficiente. A tragédia anunciada tinha se consumado. Imóvel, pernas abertas, ele perdera a batalha. O que fazer agora? Subir e encarar os colegas nem pensar. Descer muito menos. Ficaria ali para sempre? E a diarréia que não parava? E o faxineiro? Isso, o faxineiro! Não sabia quem era, mas certamente deveria ser uma pessoa humilde que por alguns trocados traria um balde de água, uns panos para limpar a si e a escada e também lhe compraria uma calça para vestir. Pronto, resolvido! Ele ficaria ali, imóvel, à espera do rapaz.

Zuleica, com os olhos inchados por três dias de lágrimas de esguicho e insônia, lamentava-se com Cora, a irmã que lhe fazia companhia desde sexta à noite:

- Viu? Não se pode confiar mesmo nos homens. Quando ele saiu para trabalhar com aquele terno branco eu bem que desconfiei. Já é segunda feira e nada de aparecer. Ninguém mais agüenta ouvir nossa voz na polícia, nos hospitais e no necrotério. Se tivesse acontecido algo, nós saberíamos. O bandido deve ter ido com alguma sirigaita para Caxambu. Ele adora aquilo lá.

- Mas Balbino sempre foi um exemplo de marido, Zu. Nunca chegou tarde, nunca bebeu, nunca fumou, nunca...

- Nunca, nunca... Mas sempre há uma primeira vez. E foi essa.

Nisso, toca o telefone, a irmã atende e após meio minuto sem abrir a boca, desliga. Com o rosto lívido fala:

- Zu... Balbino morreu. O faxineiro do prédio do banco achou o corpo hoje de manhã, na escada.

- Ai meu Deus! – Gritou Zuleica atirando-se no sofá – O que vai ser de mim agora, o que vai ser de mim...

- Espera que vou buscar um Vagostesil.

E Cora foi até a cozinha murmurando:

- Credo! O colega dele falou que ele deve ter morrido de diarréia! Podia ter sido gonorréia que era melhor...