terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O velório

A aversão a velórios, provavelmente por influência do próprio tio morto que os detestava, já se manifestava nas atitudes dela. Quase refeita do choque causado pelo falecimento que de certa forma havia sido atenuado por meses de doença incurável, andava de um lado para outro, coçava a cabeça, olhava insistentemente para o relógio e não via a hora daquela xaropada acabar.

Naquele caixão aberto, o corpo do tio querido era submetido às mais estranhas manifestações de afeto. Beijavam as mãos, o rosto, esguichavam lágrimas sobre a face pálida do defunto, ajeitavam a gravata e punham (depositavam?) ainda mais flores mortas, o que empesteava cada vez mais o ar já viciado da capela. As pessoas aos poucos perdiam a consternação exigida pela circunstância e a essa altura o sussurro respeitoso já tinha dado lugar ao vozerio. “Puxa-sacos!”, pensava Suzana, “Titio já está fedendo a cuspe de tanto beijo!”.

O tio era dono de padarias e de vários imóveis, resultado de uma vida inteira de muito trabalho. Era homem de pouca cultura mas muita educação. Carinhoso em casa, atencioso com fregueses e empregados, nunca negava ajuda a quem quer que fosse, o que explicava a quantidade de pessoas presentes.

Suzana, uma linda morena criada pelo falecido e pela mulher Clotilde, cada vez mais inconformada com aquele circo, se perguntava: “Porque não cremaram? Tio Plínio sempre disse que queria ser cremado, ele sempre detestou enterros e velórios.” E olhou para a tia: “Deve ter sido ela. Será que ele deixou por escrito e ela rasgou?”. E logo se arrependeu da idéia. “Besteira... Ela é carola mas não seria capaz disso!”.

Tanto inconformismo, não a impediu de notar um senhor charmoso que não tirava os olhos dela. Não  lembrava de tê-lo visto antes, afinal um boa-pinta daqueles ela dificilmente esqueceria. Suzana tinha uma queda por homens mais velhos, chegando até a se envolver uma vez com um homem casado,  sua única paixão,  apesar de ter namorado bastante.

Cheia daquela babação desenfreada, saiu da capela e foi tomar um cafezinho na cantina ao lado. Ao terminar deu-se conta de que havia esquecido a bolsa. O cigarro e o dinheiro estavam lá. Ao tomar fôlego para falar com a atendente e explicar o fato, dizendo que iria buscar a bolsa, sentiu um toque no ombro.

- Com licença, posso pagar seu café?

Um ligeiro susto, e Suzana virou-se.

- Posso?

- Claro! – Ela respondeu com um sorriso simpático.

Era o tal senhor elegante. Um tipo, realmente. De blazer azul sobre camisa branca e calça cinza, fazia o gênero tradicional, impecável. Cabelo curto, grisalho, barba cuidadosamente desleixada, nariz afilado, lábios desenhados, grossos os inferiores e finos os superiores, o que, segundo Suzana tinha lido, fazia antever uma natureza sexual intensa e uma inteligência acima da média, respectivamente. Os olhos castanhos-claros, quase amarelos, cercados por cílios enormes e negros impressionavam pela beleza e originalidade. Mãos, verdadeira obsessão de Suzana, com dedos longos e fortes. Unhas muito bem-feitas.

- Eu acho que não o conheço. O senhor era amigo do meu tio?

- Muito! Quer um cigarro?

- Obrigada, ia justamente buscar os meus. Mas o senhor o conhecia de onde?

- Por favor, pode me chamar de Sérgio. Seu tio falava muito de você, era uma das razões de sua vida.

Suzana delicadamente pegou o cigarro oferecido e esperou até que Sérgio acendesse seu isqueiro de grife para colocá-lo na boca. Após a tragada inicial, continuou:

- Fico feliz por isso, mas não me respondeu. De onde o conhecia?

- Da vida. Negócios, amizades...

- Vago, Sérgio, muito vago...

- Bom, eu precisaria de algum tempo para explicar com mais detalhes, mas acho que agora não é a hora mais adequada, daqui a pouco vai começar o enterro. Se não for muita intimidade da minha parte, gostaria de convidá-la para um jantar qualquer dia desses, e então poderíamos falar sobre o assunto.

- Quanto mistério!

- Aceita o convite?

- Mas eu nem o conheço!

- Mas vai conhecer, prometo.

- Ai meu Deus! Para que tudo isso?

- Já falei: aqui não é a hora e nem o lugar. Aceite, por favor. Eu pareço ameaçador?

- Não, claro que não!

Suzana estava curiosíssima. E atraída. Afinal, Sérgio preenchia todos os seus pré-requisitos, sem contar o molho especial de mistério.

- Então, vamos jantar?

- OK, você venceu! Vamos. Quando?

- Eu ligo. Pode ser antes da missa de sétimo dia?

- Pode sim, afinal, depois de tanto tempo de doença, estou sentindo alívio e não pesar. Quer anotar meu telefone?

- Não é preciso, eu já tenho o telefone da sua casa.

- Já? Ah, tinha esquecido: negócios, amizades... Sabe até que eu morava com tio Plínio, não é?

- Claro que sim. Mas vamos que o enterro já vai sair.

E foram. Sérgio, com um ar consternado, mas sem óculos escuros, segurou uma das alças do caixão. Suzana, esperta como sempre, notou interrogações e espantos nos demais presentes, mas não conseguiu traduzir sua sensibilidade em conclusões. Achou que ele era desconhecido da maioria dos parentes e amigos. Era realmente um enigma que talvez pudesse ser resolvido no jantar sugerido por ele.





Foram quatro dias, os depois do enterro, de muita parentada, amigalhada e vizinhalhada a querer fazer companhia para a viúva. Suzana era o tédio em pessoa. Tirou uma semana de folga no emprego para ficar em casa dando atenção à Tia Clotilde, mas o que realmente fazia era servir cafezinhos em profusão. Não agüentava mais. Os tios viviam de maneira simples não por avareza, mas por discrição, e por isso não tinham empregados. O falecido detestava a idéia de ter algum estranho morando com ele. Dizia que não queria a intimidade da família aberta a visitação pública, e como Clotilde ainda tinha bastante saúde, cabiam a ela todas as funções domésticas, às vezes divididas com Suzana, que sempre reivindicava a contratação de uma empregada para ajudar na casa. Plínio sempre foi inflexível nesse assunto e Clotilde dizia amém.

De vez em quando Suzana lembrava de Sérgio e do jantar prometido, mas nada que a fizesse sonhar. “Foi só uma paquerinha”, pensava.

Às oito e meia da noite do quarto dia, Suzana tomava banho após a última visita do dia ter saído. Sua tia já estava confortavelmente acomodada na sala ao lado da irmã que tinha vindo de São Paulo para passar “uns diazinhos” acompanhando a viúva. Ambas aguardavam distraídas o início da novela, quando toca o telefone.

- Tia, atende aí! – Grita Suzana do banheiro.

Clotilde, já meio surda e em clima de novela, acorda das divagações de praxe, atende e logo desliga.

- Era pra você! – Grita ela de volta – Um tal de Sérgio que disse que liga daqui a dez minutos!

Enquanto falava, andou até o banheiro e abriu a porta.

- Quem é Sérgio? – Pergunta em tom quase ameaçador.

Suzana abre a porta do boxe mostrando o rosto ensaboado e responde:

- Ué... Pensei que o conhecesse. Lembra de um cara de cabelo grisalho que segurou uma das alças do caixão do titio?

Clotilde benzeu-se e disse:

- Plínio, Deus o tenha em bom lugar... – E continuou – Lembro sim, mas não o conheço. Quem é ele?

- Eu também não sei! Esperava que a senhora soubesse, porque ele disse que tinha negócios e amizades com titio. Sabe até nosso telefone...

Clotilde benzeu-se de novo.

- Deus o tenha em bom lugar, Plínio... Coisa estranha... O que ele quer com você, afinal?

- Não sei, titia. Ele disse que me contaria tudo num jantar.

- Jantar? Mas se você nem o conhece, como é que vai jantar com ele?

- Ai, tia, eu já tenho 32 anos e sei muito bem o que faço. Vai dizer que a senhora não está curiosa para saber quem é ele?

- Estar, estou, mas...

- Pode confiar na sua sobrinhazinha, titia. Agora me deixa acabar de tomar banho senão ele telefona e eu ainda estou aqui. E deixa que eu atendo, vai ver sua novela.

Clotilde benzeu-se mais uma vez e voltou para a sala resmungando.





- Estou saindo, vocês vão ficar bem?

Suzana estava mais linda que nunca.

- Mas é hoje? Não é muito tarde, minha filha? Eu estou com um pouco de dor de cabeça...

- Não é tarde e tem aspirina na gaveta da cômoda. Quer que eu pegue?

- Não, se eu piorar eu tomo. – Respondeu Clotilde de cara amarrada.

- Então tá. Você vai ficar bem com a Tia Rosa. Qualquer coisa, liga pro meu celular, eu não vou muito longe daqui.

Numa última tentativa, Clotilde pergunta:

- Filha: não é muito cedo para se divertir? Afinal faz só quatro dias da morte do Plínio. Que Deus o tenha em bom lugar... – E benzeu-se outra vez.

- A gente já sofreu muito durante a doença, titia. Eu preciso espairecer e, de mais a mais, um jantar com um senhor distinto não é nenhuma diversão que possa desabonar a tristeza que sentimos.

Tia Rosa dá o ar da sua graça:

- Deixa ela Clotilde! A gente vai ficar bem aqui. Vai, minha filha.

- Valeu, tia. Antes da uma eu estou de volta.

Suzana beijou as duas na testa e foi, enquanto a viúva se benzia.

Enquanto esperava no portão da agradável vila de casas em Botafogo, um friozinho na barriga a incomodava. Era um misto de ansiedade, apreensão e perspectiva de tesão, afinal fazia tempo que ela não transava.

Nem cinco minutos de espera e Sérgio aparece a pé. Os olhos de Suzana brilharam: estava ainda mais bonito que no dia do enterro do tio. Faziam um par esteticamente impecável.

- Vamos? – Perguntou Sérgio secamente, sem nem ao menos cumprimentar Suzana.

- Boa noite se usa, né seu Sérgio!...

- Meu Deus, perdão! Boa noite.

Pegou a mão de Suzana, beijou com carinho e continuou a se desculpar:

- Eu tenho tanto medo de ser assaltado que acabo esquecendo a educação, desculpe.

- Você já foi assaltado?

- Não, nunca.

Sérgio parecia meio estranho aquela noite. Alguma coisa que Suzana não sabia explicar bem o que era, um nervosismo, um medo exagerado, sabia lá? Mas esqueceu logo assim que a Mercedes negra parou bem em frente a ela e um sorridente chofer paramentado prontamente lhe abriu a porta.

- Obrigado. – Disse ela.

E entrou no carro. Sérgio deu a volta, entrou pela outra porta e falou ao chofer:

- Vamos Chico.

- Vaomos aonde? – Perguntou Suzana.

- Desculpe de novo. – Emendou Sérgio ainda parecendo afobado – É que eu estou tão habituado a sempre ir ao mesmo lugar, e sozinho... Quer ir ao Antiquarius?

- Claro! Mas Sérgio, você tá tão nervoso... O que é? Você é casado? Tem namorada?

Suzana era rápida e direta e, pela primeira vez aquela noite, arrancou um sorriso de Sérgio.

- Não, não... É que o que eu quero falar é meio embaraçoso.

- Ai meu deus, continua esse mistério? Fala logo, homem!

- Mais tarde, com um bom vinho, e a sós. – E Sérgio apontou discretamante para o motorista.

- Ah, tá...





Devidamente instalados depois dos salamaleques de praxe por parte do métre, Suzana e Sérgio já conversavam animadamente sobre amenidades, bebericando um bom Porto White seco.

- Não conhecia vinho do Porto branco. E eu sempre pensei que Porto se bebesse após as refeições.

- O branco seco se usa antes porque é excelente para acompanhar entradas. Desperta o apetite e estimula a salivação. Realmente é pouco conhecido aqui. – Explicou Sérgio sem a afetação habitual de quem fala de vinhos.

- Bom, agora fala. – Disparou Suzana.

- Sabe que você é muito bonita? – Perguntou Sérgio tentando descoversar ao mesmo tempo que tomava a mão de Suzana entre as suas.

- Não me enrola! – Disse ela ao mesmo tempo que recolhia sua mão presa – Você já fez muito mistério, agora fala!

Vendo que não iria conseguir adiar por mais tempo a revelação, Sérgio começou devagar:

- Você é exatamente como seu tio Plínio descreveu: decidida. E é esse o ponto que me preocupa. Um julgamento precipitado do que tenho a dizer pode acabar mal. Promete que vai pensar bem sobre o assunto antes de tomar qualquer atitude?

- Não prometo nada! – Exclamou ela sem pestanejar e já meio irritada – E fala logo!

- Calma. Eu e o Plínio nos conhecíamos há muito tempo. Eu acho que eu tinha uns 17 anos quando fui trabalhar para ele na padaria lá da Marquês de Abrantes.

- Ué... Trabalhou com ele? E em padaria?

- Sim, por que o espanto?

- Você não parece... Sei lá! Não combina.

- Com a minha aparência hoje? É isso?

- É.

- Eu chego lá. Eu entregava pão e tudo o mais na casa dos fregueses. Seu tio logo simpatizou comigo, eu com ele e deu-se o caso.

- Caso, Sérgio?

- É... Tivemos um caso até ele morrer, praticamente.

- Você não presta! E eu que vim aqui pensando que era coisa séria. Seu cafajeste! A troco de que você fez isso comigo?

Suzana estava encolerizada. Falava baixo, pois que não era dada a escândalos, mas estava roxa de raiva.

- Calma, deixa eu te mostrar umas fotos...

- Que calma, que fotos que nada! Eu vou embora!

E, antes que ela levantasse, Sérgio pôs na mesa uma foto que devia ter uns 5 anos, com ele e o tio Plínio abraçados em meio a montes de neve e disse:

- Lembra da última viagem que seu tio fez antes de ficar doente?

- Pára com essas mentiras! Tio Plínio foi com tia Clotilde para Portugal. Isso é montagem!

E ele virou a foto mostrando o verso, onde se lia: “Ao meu amado Sérgio com um beijo do seu Plínio”. Suzana ficou pasma. A letra era, incontestavelmente, do seu tio, isso ela conhecia bem, pois o ajudava nas escritas.

- Mas... E tia Clotilde? Foi ela que tirou a foto? Não posso acreditar no que li...

Suzana estava tonta. Sérgio respondeu:

- Não, ela ficava sempre em Portugal e nós viajávamos.

- Mas ela te conhecia? Ela sabia?...

- Não me conhecia, nem nunca me viu, a não ser no velório. E ela sabia que seu tio era... era...

- Bicha?

- Eu não diria isso. Eu tenho cara de bicha? – Perguntou Sérgio.

Suzana já mais calma:

- É... Até que não... Mas afinal de contas, a troco de que você resolveu me dizer isso? Não podia ter ficado calado e me poupar desse desprazer?

- É que tem mais uma coisinha...

- Putz! Só falta dizer que tia Clo é sapatão!

- Não, claro que não! – Respondeu Sérgio já sorrindo de novo com a bobagem de Suzana – É que o Plínio deixou metade dos bens dele para mim. O inventariante já procurou vocês?

- Eu sabia! Quer saber de uma coisa? Enfia essa grana onde você mais gosta e me deixa em paz! Metade do que ele tinha já serve e sobra.

Suzana ia se levantar mas foi contida por Sérgio:

- Eu não quero a minha metade. Foi por isso que perguntei se vocês já conversaram com o inventariante. Ele tem a autorização por escrito da minha renúncia aos bens. E foi por isso também que quis conversar com você. Seu tio patrocinou meus estudos e hoje, graças a ele, tenho minhas firmas e meu patrimônio bem razoável.

- Tô perplexa! É muita coisa pra uma noite só! E olha só, o tal do Porto White já foi todinho... Primeiro eu me empolgo com um cara maduro, achando que ele ia dar conta do recado, depois discubro que ele era namorado do meu tio que eu nem desconfiava que era viado...

- Suzana!...

- ...Depois o cara herda uma grana, nem dá bola e devolve prá mim. É prá enlouquecer!

- Não acha que já bebeu demais? Quer pedir a comida? – Disse Sérgio preocupado.

- E você acha que se eu estivesse sóbria ainda estaria aqui?

- Não sei... Mas você falou uma coisa que me interessou.

- Que foi?

- Você se empolgou por mim?

- Ih! Isso foi antes de você dizer que era vi...

- Suzana!... Pára! Quer fazer uma tentativa? Você é tão bonita e eu tão sozinho...

- Heim? Você tá me cantando, é isso? Surtou? Teve recaída?

- Estou falando sério. Nunca tive nada com ninguém a não ser o Plínio. Vamos tentar...

- Nem com mulher?

- Nada. Me senti tão atraído por você que cheguei a pensar em não falar, mas no fim das contas, você ia descobrir, e seria bem pior.

- Bom, como você não é de se jogar fora e eu estou meio alta, faz o que quiser. Afinal, titia viveu com uma biba tanto tempo... Só não garanto amanhã, quando o efeito do vinho acabar. Combinado?

Negão

- Fala zé-arruela!
- Fala boiola, chega mais! Deixa eu te apresentar aqui: o Adilson você já conhece; esse aqui é o Negão e, do lado dele, o Piu-Piu.
- Falou gente boa! Tudo certo? Essa mala me apresentou a vocês, só que não disse quem eu sou. Acabei de chegar agora com a irmã desse cara. Infelizmente sou cunhado dessa praga, mas não é culpa minha não!
- O Cascão já tinha falado de você, teu nome é Roni, né? Mora em Ipanema...
- Porra! Meu dossiê já tá nas bocas? Mas peraí, quem é Cascão?
- É o teu cunhado, que come goiabada cascão com cerveja, tu não sabia?
- Só se for goiabada mesmo. Ele quando bebe cerveja não come ninguém!
- E o que que é dossiê, branco?
- Folha-corrida, a ficha.
- Ah, falou... Neguinho de Ipanema tem sempre uma novidade estrangeira.
- Num fode! Tem cerveja de gente aqui?
- Ó aqui. Pega um copo pro cara, Benjamin.
- Peraí, eu falei cerveja de gente! Eu quero é uma Antarctica! Não vai botar Brahma que eu não bebo!
- Porra! Pra quem vem de fora tu é meio cheio de marra né?
- Cheio de marra não, Negão! Só tô sendo sincero. Ou você quer que eu beba o que não gosto? E além de tudo eu não vim de fora. Tem dez anos que sempre que venho na casa da sogra freqüento esse boteco com o cunhadão e o Adilson. Acho que vocês é que vieram de fora, tem só uns seis meses que não venho aqui e nunca vi vocês antes, logo, quem é mais de fora?
- Roni, pega leve... Já chegou mamado?
- Ih, qualé cunhado? Tô mentindo?
- Não, mas você mal conhece os caras e já vem cheio de argumento.
- Porra, quem tá muito cheio de argumento é você. Ô Negão, falei alguma besteira?
- Tá limpo, branco. Não esquenta.
- Tá vendo, bundão? Agora vamos beber. Ô seu Beja, bota uma pra mim aqui. Antarctica!
- Essa eu não pago!
- Ué, tá patrocinando, Negão? Perdeu na porrinha?
- Não, hoje num tem porrinha. Num jogo essa porra.
- Porra não, porrinha! Mas só porque você não joga ninguém joga?
- Hoje é só no lero. Fica frio.
- Tá certo, só no lero. Mas Negão, tu não paga a minha por que?
- Tava de onda, pago sim. Não devia, porque essa cerva é ruim pra daná e tu tá cheio de marra.
- Ele é assim mesmo, Negão. Só não é mais folgado por  falta de espaço! Mas no fundo é boa gente.
- Falou Cascão! Roni, vamo lá no fundo que eu quero ver se tu é boa gente mesmo...
- Tá doido cara? O que que eu vou fazer lá dentro com um negão feio que nem você? Me deixa aqui fora mesmo!
- Tu me acha feio assim, branco?
- Pra cacete! Além de tudo, lá no fundo tá escuro e como é que vou te enxergar? Se ao menos você tivesse um dente... Aliás, todo crioulo deveria ter só dois dentes: um pra roer osso e outro pra gente abrir cerveja!
- Roni, chega! Tu não conhece o cara...
- Fica na tua Cascão, deixa O Roni comigo.
- Eu hem, Negão? Vou ficar contigo pra que?
- Papo sério, chega aqui dentro.
- Cunhado, acho que vou comer um crioulo, mas se eu gritar, corre lá dentro que eu perdi a parada e não quero ver a coisa preta não!
- Vamo lá, branco.
- Tô indo.
- Aqui tá bom. Seguinte: lembra uns remédios que o Cascão te pediu mês passado?
- Lembro sim, por que? Era pra você?
- Não, era pro meu filho, ele tava malzão de bronquite.
- Sei... E ele melhorou?
- Agora tá beleza! Queria te agradecer e pagar.
- Quéisso Negão! Aqueles remédios eu tenho pra distribuir mesmo. Agora tu tem que fazer uma coisa: vou te dar meu cartão e tu marca uma hora lá no meu consultório pro teu filho. Ele tem que começar um tratamento. É longe mas com saúde de filho não se brinca!
- Deixa comigo. A mãe dele vai levar.
- E por que tu não vai com ele? Tá com vergonha de mostrar essas gengivas em terra de branco, crioulo?
- Né não, branco. É que sou gerente da parada aqui e não posso sair.
- Parada? Que parada?
- A boca, branco! Vendo pó da melhor qualidade. Num dá pra eu sair da área porque os homi me grampeia! Roni... Ô Branco levanta!... Cascão, corre aqui que eu acho que teu cunhado desmaiou!

E Agora?

- E agora?
- Agora o que, Leila?
- O que é que a gente faz a respeito do Bruno, ora!
- Aceita.
- Mas é só isso que você tem a dizer?
- Uai, o que mais eu posso dizer? Já viu alguma bicha voltar a ser homem?
- Não fala assim, Paulo. Ele é nosso filho!
- Agora é filha...
- Pára! Não sei como você pode brincar com uma coisa dessas! Já tomei dois Lexotan do jantar até agora.
- É... Ele podia pelo menos ter escolhido outra hora pra anunciar. Logo no jantar! Sua tia, com o susto, engoliu o garfo e a peruca do seu tio caiu no macarrão.
- Não brinca! Não sei como você pode estar assim tão tranqüilo. Pensei que fosse voar no pescoço do Bruno.
- É que eu já sabia.
- Sabia?
- Quer dizer, desconfiava muito.
- E por que não me falou?
- Eu tentei várias vezes, mas você desconversava.
- Mentira! Você nunca me falou nada!
- Falei sim! Lembro até de uma vez na casa as sua mãe, quando disse que o Bruno era muito parecido...
- Com o Chico! Sabia que ia sobrar pra ele!
- É, e você não me deixou continuar a falar. Eu ia falar das semelhanças entre tio e sobrinho, o tipo de herança genética que nosso filho teve da sua família...
- Tinha que ser, né Paulo? Agora o Bruno é homossexual por causa da minha família?
- E não? Qual a única bichona que a gente tem na família?
- Como você é grosso! Isso não é hereditário. Pode ser psicológico...
- Sem-vergonhice...
- Não fala assim! O Bruno sempre foi um bom filho, talvez a falha tenha sido nossa até.
- E eu acho que foi mesmo. Só não entendo porque ele demorou tanto pra assumir.
- Claro! Você sempre foi tão rigoroso com ele! Lembra o que nossos amigos diziam sobre sua forma de educar?
- É, me chamavam de carrasco... Mas Leila, ele já está com quase 30 anos, não dava pra ele ter decidido se queria ser menino ou menina antes?
- Ai, pára de deboche!
- Agora sério: eu até andei levando seu filho...
- Nosso!
- ...Nosso filho, há uns 10 anos, a um endocrinologista por causa da minha desconfiança, mas o cara é hormonalmente normal.
- Hornormalmente mornal? Xiii, péra: hor-mo-nal-men-te nor-mal! É o Lexotan enrolando minha língua.
- É. Nada físico. E parece que nada psicológico também, ele está tão feliz da vida. Por isso que eu disse que era sem-vergonhice mesmo. Acho que ele tem até um namorado novo...
- Paulo, pára! Eu tô falando sério! Logo agora que eu tava alimentando a idéia de ser avó... Você não queria ser avô?
- Queria sim, mas quem sabe agora eu poderia ser avó?
- Como você é cruel! Mas ao mesmo tempo estou te achando tão conformado...
- Não é crueldade, Leila. Estou levando numa boa. Como eu disse antes, nunca vi bicha voltar da purpurina. E como já dizia meu pai: “se a curra é inevitável, relaxe e goze”. De mais a mais você vai lucrar muito com isso.
- Com isso o que, Paulo?
- Com a viadagem do nosso filho.
- Homossexualidade, por favor!
- Tá, eu tinha esquecido que viado é o filho do vizinho, o nosso é homossexual...
- Pára! Mas como é que é isso de eu lucrar com essa situação?
- Muito simples: bicha adora a mãe. Não vê seu irmão com a sua mãe? Ela adora o Chico, e ele tem veneração por ela, faz tudo pra ela. Leva ao cinema, ao teatro, vai andar na praia com ela, leva ao médico, experimenta os vestidos dela...
- Menos!
- Afinal o primeiro sutiã que ele usou deve ter sido dela...
- Paulo!...
- Agora sério: já pensou em quando você ficar velhinha e ter sempre por perto seu filho, uma companhia carinhosa, prestativa e constante? Eu nem vou precisar colocar você no asilo...
- Olha, apesar do seu sarcasmo, sabe que fiquei mais calma agora? Será que você tem razão?
- Pode escrever que sim. Assino embaixo.

domingo, 25 de agosto de 2013

- Joana, atende esse telefone!

- Que telefone, vó?

- Será que não está ouvindo?

- Ouvindo o que?

- Esse pi-pi-pi.

- Isso é um alarme de carro que disparou lá na rua, vó.

- Tem certeza?

- Claro que tenho, vó.

- Esses barulhinhos hoje  são todos iguais só pra confundir a gente. O trim-trim dos telefones antigos era muito melhor. Pelo menos a gente não confundia. Vamos tomar um sorvete?

- Tenho que fazer o dever de casa, vó.

- Depois você faz, vamos.

- Mamãe não vai gostar...

- Ela nem vai saber. Adoro aquele sorvete de pistache ali da esquina.

- Que esquina, vó?

- A sorveteria ali da esquina.

- A sorveteria fica a dois quarteirões daqui. Ali na esquina tem uma pizzaria.

- Ué, mudou?

- Não vó, sempre foi ali.

- Sempre nada, menina. Você ainda é muito pequena pra lembrar.

- Vó, eu já tenho doze anos...

- Doze? Em que ano nasceu?

- Oitenta e oito.

- Então tem nove!

- Vó, nós estamos em 2001, vou fazer treze em setembro!

- Já?... Como você cresceu!

- Ai meu Deus... Vamos então na sorveteria antes que mamãe chegue.

- Que sorveteria minha filha?

- Você não disse que queria tomar um sorvete de pistache?

- Ah, eu adoro! Mas agora não, você tem que fazer o dever de casa e depois se a sua mãe descobre, vai reclamar é comigo.

- Ih, tá complicado...

- O que, minha filha? O seu dever?

- Não vó, ainda nem comecei a fazer.

- Não? Então vamos na sorveteria lá da esquina tomar um sorvete antes que sua mãe chegue...

terça-feira, 4 de junho de 2013

Camisinha


- Manhê!
- Que é Pedrinho?
- Você guardou alguma roupa minha do tempo em que eu era bem pequenininho?
- Por que isso agora?
- Guardou ou não?
- Guardei sim, por quê?
- É por causa do anúncio da televisão.
- Que anúncio, menino? Doação de roupas?
- Não, mãe, é aquele que diz que se a gente usar roupa pequena não pega doença que dá tremedeira.
- Que anúncio é esse que eu não conheço?
- É aquele que diz “proteja-se das doenças num-sei-que-lá estremecíveis, use camisinha”! Me dá uma camisinha antiga que eu não quero estremecer não.
- Pedrinho, não é nada disso! É “sexualmente transmissíveis” que se diz.
- E o que é isso, mãe?
- São doenças que “pegam”.
- Dá no mesmo, eu não quero pegar doença nenhuma. Me dá minha camisinha!
- Filho, não é nesse tipo de camisinha que o anúncio fala...
- E qual é então? Sem botão?
- Não, filho, não é de vestir... Ou é?... Não é de botar pela cabeça... Ou é?... Não é de botar no corpo... Ou é?... Ih, você me deixa confusa!
- Manhê, quer explicar direito? Eu num tô entendendo nadinha!
- Bom, vou tentar... Na escola você tem aula de educação sexual, né?
- Tenho.
- E o que você já aprendeu lá?
- Nada!
- Como nada?
- Mãe, a aula é muito chata. A tia só fica mostrando slide de pinto e xoxota por dentro.
- Pênis e vagina, Pedro!
- Isso, é assim que ela chama. Mas é um saco, eu nem presto atenção na aula, não vale ponto...
- É por isso que você não sabe o que é camisinha, não presta atenção...
- Eu acho que a tia ainda não falou nada de camisinha. Ela fica só em ovinhos...
- Não seriam ovários ou óvulos?
- Isso, os dois! E fala muito de um assassino.
- Assassino?
- É, um tal de Espér. Diz que ele matou não sei quem e aí deu um Fê-Kun-Dô com o ovinho. Ele matou o cara com essa luta? É parecido com Kung-Fu?
- Pedrinho, você devia prestar mais atenção nessas aulas. Não é nada disso que você falou. Espermatozóide não é assassinato, é o nome da sementinha...
- Vai dar essa de sementinha? A tia disse que isso não existe!
- Esquece a tia e vai por mim agora, já que você não presta atenção na aula dela. Espermatozóides são as sementes que saem do homem e acabam fecundando os óvulos da mulher e então, como uma semente na terra, se transformam num ser vivo, um bebê. Não tem nada a ver com luta, é fecundou e não Fê-Kun-Dô.
- E a camisinha?
- Calma! A camisinha é o que o homem põe pra evitar que os espermatozóides saiam e fecundem o óvulo da mulher.
- E as doenças sexualmente intransponíveis?
- Transmissíveis, presta atenção! O homem e a mulher sem o contato direto de pele com pele, evitam passar doenças um para o outro.
- E o resto?
- Que resto?
- Uai, o homem bota a camisa e o resto do corpo fica encostando?
- Peraí! Camisinha é o nome que se dá a um plástico fininho que o homem põe no pênis na hora do ato sexual. Uf, consegui!
- Ah, pra trepar! Por que você não falou antes?
- Pedro! É ato sexual que se fala!
- Tá, mas o que que isso tem a ver com filhos e doenças?
- É que é dessa maneira que se faz um filho! Ato sexual sem camisinha tem filho e doença, com camisinha, sem filho e sem doença.
- Quer dizer que sem camisinha nasce filho doente?
- Não, meu filho. Quando a gente quer tre... ter um ato sexual sem conhecer direito o parceiro, a gente bota a camisinha.
- Você também?
- Eu não, só homem bota.
- Que confusão, mãe! O papai tem camisinha?
- Tem, vem cá que eu vou te mostrar.
- Ele usa?
- No meu período fértil, sim. Mas esquece isso, não complica! Olha aqui uma camisinha.
- Parece chapéu...
- É que tá enrolado, peraí.
- Ih...
- O que foi? Desenrolei. Não tem o formato de um pênis?
- Tem sim, meio grande pro papai, mas tem. É que eu outro dia levei um susto quando achei uma dessas na cama de vocês pela manhã.
- Por quê?
- Pensei que vocês tinham trepado tanto que a pele do papai tinha saído...

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Gravidade

- Eu tentei, juro que tentei.

- É, mas não o suficiente. Força um pouco. Para de olhar pra cima e olha em frente.

- É fácil falar, mas não consigo. Há uns 25 anos eu faria tranqüilo, mas hoje, só em pensar, me dá medo.

- Mas medo de que, exatamente?

- Do que vem de cima. A lei da gravidade ainda não foi revogada, sabia?

- Por que então você não anda por baixo das marquises?

- Enlouqueceu? Sei lá se são bem-feitas! Não conheço a estrutura delas e nem as idades. Pode haver fadiga de material, falha no projeto ou até mesmo negligência do construtor. Não vê o caso do prédio do Naya? Vai por mim que a coisa é séria.

- Estou vendo... Mas será que não dá pra você pelo menos olhar pra mim enquanto fala?

- E se cair alguma coisa, quem vai ver?

- Cair de onde? Nós estamos bem na beira da calçada e não tem nada acima das nossas cabeças!

- Ah, sempre aparece! Numa briga de marido e mulher, por exemplo, a mulher, que é sempre ruim de mira, vareja um prato na cabeça do marido, erra, o prato voa pela janela e vem cair bem nas nossas cabeças. Se eu não estiver de olho, olha a lambança feita!

- Delirante! É o único adjetivo que encontro no momento pra te descrever. Você conhece estatística? Sabe qual é a probabilidade de acontecer isso?

- Eu sei, quase nenhuma, mas estatísticas trabalham com médias, o que não quer dizer que a probabilidade não exista, e médias não são confiáveis.

- Por quê?

- Veja um exemplo que um político deu uma vez: um cara que está com a cabeça no freezer e as pernas no forno tem sua temperatura média normal, mas na prática ele vai morrer!

- Um sofisma barato!

- É verdade, mas eu prefiro ele a acreditar em probabilidades. Falando nisso, você sabe que no ano passado morreram 55 pessoas atingidas por cocos nos Estados Unidos? Morreu mais gente de cocada que em corridas de carros.

- Tá brincando?

- Sério!

- Alguma vez caiu alguma coisa na sua cabeça? Um vaso, uma lata de tinta...

- Nada, mas eu não dou mole! Fico de olho. Aliás, um dia eu estava indo à casa de uma namorada, e a medida que me aproximava do prédio, um certo vozerio ia aumentando de volume sem que eu descobrisse de onde vinha. Naquela época eu ainda não olhava pra cima. Quando cheguei bem em frente ao prédio, bum!, uma velha caiu a meio metro de mim, era a avó da menina que, já meio chegada a um Alzheimer, se jogou da marquise.

- Ela morreu?

- Não, mas se quebrou toda. Quem quase morreu fui eu, de susto. Acho foi que depois desse episódio que eu fiquei assim.

- Tá explicado!

- Pensei até em processo por tentativa de homicídio, mas depois...

- Cuidado!

- O que foi? Cuidado com que?

- É tarde, você pisou na bosta...

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Balbino

Era manhã de uma sexta feira de maio e o sol agradável do outono, ainda baixo estava lá, sozinho no céu sem nuvens. Ipanema ainda não era tomada por prédios altos colados uns aos outros, o que fazia que os horizontes fossem bem mais distantes que hoje. De onde quer que se estivesse era possível ver morros, mar, lagoa e muito céu. Sentia-se ainda o cheiro dos matos próximos, dos pães assando e do café torrando. Ouvia-se ainda os galos cantando, a algazarra dos pássaros e o tlim-tlim do bonde.

Balbino parecia ignorar tudo isso. De segunda a sexta pontualmente às oito beijava Zuleica na testa, descia os poucos degraus que separavam a varanda da calçada e, sem uma palavra, olhar fixo num ponto no chão a dois metros do seu nariz, partia rumo ao ponto do bonde que o levava ao centro da cidade para mais um dia de trabalho no banco. Zuleica ficava na porta até seu marido sumir na esquina, suspirava, fechava a porta da varanda e, resignada, iniciava a cumprir a parte que lhe cabia naquela união: cuidar da casa.

Naquela sexta, para espanto da mulher, o terno estendido sobre a cama por fazer era o de linho branco, usado somente aos domingos para os passeios que invariavelmente terminavam em um lanche na Confeitaria Colombo.

- Vai com esse terno hoje? - arriscou.

- Vou. Por favor, repasse os vincos - disse Balbino, secamente como de costume, enquanto trancava a porta do banheiro para iniciar seu ritual de asseio.

- Algum motivo especial? - perguntou ressabiada.

- Nenhum.

E mais não se conversou. O terno foi passado cuidadosamente com o capricho de sempre: um lencinho ligeiramente úmido protegendo o linho do contato direto com o ferro para evitar brilhos indesejados nos vincos e pregas.

A despedida foi a usual, mas Zuleica ficara intrigada. Tanto que fechou a porta de entrada antes mesmo que Balbino dobrasse a esquina. Ligou o rádio, parou, pensou durante uns segundos e murmurou:

- Bobagem!

Afinal, ele nunca tinha dado o menor motivo para que desconfiasse do que quer que fosse. E apagou de sua mente suas dúvidas assim que começou a tirar a mesa do café e a pensar no que faria para o jantar.

Balbino procurou minuciosamente um lugar no banco do bonde, esfregou com vigor, no assento e no encosto, um dos dois lenços que trazia e só então se sentou. Colocou o guarda-chuva entre as pernas - sempre carregava seu guarda-chuva - e pôs-se a pensar no seu dia de trabalho. Tinha muito pouco serviço, mas valorizava muito o que fazia.

A manhã no serviço foi absolutamente igual a centenas de outras anteriores, muitos carimbos e nenhuma conversa. Seus colegas estavam tão habituados com sua sisudez que sequer lhe dirigiam um olhar, e ele não se importava com isso.

Chegada a hora do almoço bateu seu ponto, e em dois ou três minutos já estava sentado à mesa em que há quase trinta anos costumava comer seu peito de frango grelhado com batatas cozidas. Problemas com uma gastrite o obrigavam a tal espartana iguaria. Mas naquele dia, talvez inspirado pelo terno de linho branco, decidiu:

- Francisco, traga-me o cardápio, por favor.

Chico - como todos os outros fregueses o chamavam - já se encaminhava automaticamente para fazer o pedido habitual ao cozinheiro, ao ouvir tão inusitado pedido - vindo de quem vinha - parou, e como se não tivesse entendido resolveu se certificar:

- Perdão senhor, o cardápio?

- Não foi isso que pedi? Por que o espanto?

Balbino passou uns cinco minutos lendo. O preço não era importante, só lia os nomes dos pratos e suas descrições. Afinal, ganhava bem, tinha economias e não tinha filhos com quem se preocupar. Foi quando num sobressalto olhou o relógio e viu que quase dez minutos haviam se passado e ele nem sequer decidira o que comer. Em dias normais, a esta hora, já estaria iniciando sua refeição. Era hora de decisões rápidas. Estalou discretamente os dedos e o garçom, ainda não refeito do susto, aproximou-se da mesa rapidamente.

- Por favor, uma dobradinha com feijão branco.

- Uma dobradinha senhor?

- É. E meia garrafa de Precioso tinto.

Se já tivesse tomado uns goles, o pobre do garçom poderia atribuir ao álcool o que ouvira e ignoraria tudo. Mas estava sóbrio e, mesmo sem acreditar muito em seus sentidos, fez o pedido.

Quando o último caldinho de feijão branco foi absorvido pela última fatia de pão francês e o último gole de vinho foi seguido por um sonoro estalido de língua, o atento e ainda boquiaberto Chico aproximou-se:

- Mais alguma coisa, senhor?

As bochechas sempre brancas de Balbino apresentavam um vermelho arroxeado estranho, que ainda mais aproximavam sua fisionomia a uma caricatura viva.

- Não, obrigado. Só a conta.

Pagou e deixou gorjeta.

Chico, tão logo o freguês saiu, correu até o esconderijo atrás da porta da cozinha tirou a rolha de uma garrafa camuflada entre uns cascos vazios e bebeu um gole farto de cachaça para se refazer do susto e comemorar por ter visto a cor do dinheiro de uma fonte até então desconhecida.

Ao se levantar da cadeira do restaurante, Balbino já havia sentido um torpor e uma pequena tonteira agradáveis tomando conta de suas reações sempre tão programadas. Agora já na calçada, arriscava até uma olhada nos joelhos das raras moças que passavam. Chegou até a concordar com Humphey Bogart sobre a humanidade estar sempre algumas doses atrasada.

Mas de repente, parado na esquina aguardando o sinal para atravessar a avenida, algo estranho começou a acontecer com seu corpo. O calorzinho relaxante proporcionado pelo vinho transformara-se rapidamente em um inferno. Passou a mão pela testa e, ao senti-la encharcada, tirou o chapéu para se abanar enquanto, com a outra mão, sacava um de seus lenços para enxugar o suor. Atrapalhado e já a essa altura um pouco nervoso, deixa cair seu inseparável guarda-chuva e imediatamente abaixa para reavê-lo. Foi aí que sentiu que a dobradinha adqüirira vida própria - e que vida! Sua barriga começava a emitir sons inauditos ao mesmo tempo que movimentos sísmicos intra-intestinais varriam toda sua extensão.

“Devem ser gases”, pensou.

Finalmente o sinal abriu e Balbino reiniciou sua caminhada de volta ao trabalho.

Gastrite não pode ser, conjecturava. “Não sinto dor no estômago. Devem ser gases mesmo. Vou arriscar.”

Não teve coragem. O sismo tinha descido perigosamente impedindo-o de aliviar os supostos gases sob pena de se consumar a tragédia. Agora só pensava em chegar ao banheiro do escritório. Era pertinho, uns cem metros, se tanto, mas tinha o elevador e seu objetivo era o sexto andar. Obcecado em chegar, caminhava com cuidado, passos rápidos mas miúdos, evitando maiores riscos.

- Ai meu Deus! - murmurou, ao ver o tamanho da fila dos elevadores.

Como fosse impossível àquela altura esperar duas ou três viagens até que conseguisse um lugar, resolveu imediatamente subir as escadas, e com extremo cuidado conseguiu superar o primeiro lance. À medida que subia, sua confiança aumentava e apressava o ritmo. Num arroubo de coragem entre o quarto e o quinto andares, tentou suplantar dois degraus com um único movimento. Foi o suficiente. A tragédia anunciada tinha se consumado. Imóvel, pernas abertas, ele perdera a batalha. O que fazer agora? Subir e encarar os colegas nem pensar. Descer muito menos. Ficaria ali para sempre? E a diarréia que não parava? E o faxineiro? Isso, o faxineiro! Não sabia quem era, mas certamente deveria ser uma pessoa humilde que por alguns trocados traria um balde de água, uns panos para limpar a si e a escada e também lhe compraria uma calça para vestir. Pronto, resolvido! Ele ficaria ali, imóvel, à espera do rapaz.

Zuleica, com os olhos inchados por três dias de lágrimas de esguicho e insônia, lamentava-se com Cora, a irmã que lhe fazia companhia desde sexta à noite:

- Viu? Não se pode confiar mesmo nos homens. Quando ele saiu para trabalhar com aquele terno branco eu bem que desconfiei. Já é segunda feira e nada de aparecer. Ninguém mais agüenta ouvir nossa voz na polícia, nos hospitais e no necrotério. Se tivesse acontecido algo, nós saberíamos. O bandido deve ter ido com alguma sirigaita para Caxambu. Ele adora aquilo lá.

- Mas Balbino sempre foi um exemplo de marido, Zu. Nunca chegou tarde, nunca bebeu, nunca fumou, nunca...

- Nunca, nunca... Mas sempre há uma primeira vez. E foi essa.

Nisso, toca o telefone, a irmã atende e após meio minuto sem abrir a boca, desliga. Com o rosto lívido fala:

- Zu... Balbino morreu. O faxineiro do prédio do banco achou o corpo hoje de manhã, na escada.

- Ai meu Deus! – Gritou Zuleica atirando-se no sofá – O que vai ser de mim agora, o que vai ser de mim...

- Espera que vou buscar um Vagostesil.

E Cora foi até a cozinha murmurando:

- Credo! O colega dele falou que ele deve ter morrido de diarréia! Podia ter sido gonorréia que era melhor...