terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O velório

A aversão a velórios, provavelmente por influência do próprio tio morto que os detestava, já se manifestava nas atitudes dela. Quase refeita do choque causado pelo falecimento que de certa forma havia sido atenuado por meses de doença incurável, andava de um lado para outro, coçava a cabeça, olhava insistentemente para o relógio e não via a hora daquela xaropada acabar.

Naquele caixão aberto, o corpo do tio querido era submetido às mais estranhas manifestações de afeto. Beijavam as mãos, o rosto, esguichavam lágrimas sobre a face pálida do defunto, ajeitavam a gravata e punham (depositavam?) ainda mais flores mortas, o que empesteava cada vez mais o ar já viciado da capela. As pessoas aos poucos perdiam a consternação exigida pela circunstância e a essa altura o sussurro respeitoso já tinha dado lugar ao vozerio. “Puxa-sacos!”, pensava Suzana, “Titio já está fedendo a cuspe de tanto beijo!”.

O tio era dono de padarias e de vários imóveis, resultado de uma vida inteira de muito trabalho. Era homem de pouca cultura mas muita educação. Carinhoso em casa, atencioso com fregueses e empregados, nunca negava ajuda a quem quer que fosse, o que explicava a quantidade de pessoas presentes.

Suzana, uma linda morena criada pelo falecido e pela mulher Clotilde, cada vez mais inconformada com aquele circo, se perguntava: “Porque não cremaram? Tio Plínio sempre disse que queria ser cremado, ele sempre detestou enterros e velórios.” E olhou para a tia: “Deve ter sido ela. Será que ele deixou por escrito e ela rasgou?”. E logo se arrependeu da idéia. “Besteira... Ela é carola mas não seria capaz disso!”.

Tanto inconformismo, não a impediu de notar um senhor charmoso que não tirava os olhos dela. Não  lembrava de tê-lo visto antes, afinal um boa-pinta daqueles ela dificilmente esqueceria. Suzana tinha uma queda por homens mais velhos, chegando até a se envolver uma vez com um homem casado,  sua única paixão,  apesar de ter namorado bastante.

Cheia daquela babação desenfreada, saiu da capela e foi tomar um cafezinho na cantina ao lado. Ao terminar deu-se conta de que havia esquecido a bolsa. O cigarro e o dinheiro estavam lá. Ao tomar fôlego para falar com a atendente e explicar o fato, dizendo que iria buscar a bolsa, sentiu um toque no ombro.

- Com licença, posso pagar seu café?

Um ligeiro susto, e Suzana virou-se.

- Posso?

- Claro! – Ela respondeu com um sorriso simpático.

Era o tal senhor elegante. Um tipo, realmente. De blazer azul sobre camisa branca e calça cinza, fazia o gênero tradicional, impecável. Cabelo curto, grisalho, barba cuidadosamente desleixada, nariz afilado, lábios desenhados, grossos os inferiores e finos os superiores, o que, segundo Suzana tinha lido, fazia antever uma natureza sexual intensa e uma inteligência acima da média, respectivamente. Os olhos castanhos-claros, quase amarelos, cercados por cílios enormes e negros impressionavam pela beleza e originalidade. Mãos, verdadeira obsessão de Suzana, com dedos longos e fortes. Unhas muito bem-feitas.

- Eu acho que não o conheço. O senhor era amigo do meu tio?

- Muito! Quer um cigarro?

- Obrigada, ia justamente buscar os meus. Mas o senhor o conhecia de onde?

- Por favor, pode me chamar de Sérgio. Seu tio falava muito de você, era uma das razões de sua vida.

Suzana delicadamente pegou o cigarro oferecido e esperou até que Sérgio acendesse seu isqueiro de grife para colocá-lo na boca. Após a tragada inicial, continuou:

- Fico feliz por isso, mas não me respondeu. De onde o conhecia?

- Da vida. Negócios, amizades...

- Vago, Sérgio, muito vago...

- Bom, eu precisaria de algum tempo para explicar com mais detalhes, mas acho que agora não é a hora mais adequada, daqui a pouco vai começar o enterro. Se não for muita intimidade da minha parte, gostaria de convidá-la para um jantar qualquer dia desses, e então poderíamos falar sobre o assunto.

- Quanto mistério!

- Aceita o convite?

- Mas eu nem o conheço!

- Mas vai conhecer, prometo.

- Ai meu Deus! Para que tudo isso?

- Já falei: aqui não é a hora e nem o lugar. Aceite, por favor. Eu pareço ameaçador?

- Não, claro que não!

Suzana estava curiosíssima. E atraída. Afinal, Sérgio preenchia todos os seus pré-requisitos, sem contar o molho especial de mistério.

- Então, vamos jantar?

- OK, você venceu! Vamos. Quando?

- Eu ligo. Pode ser antes da missa de sétimo dia?

- Pode sim, afinal, depois de tanto tempo de doença, estou sentindo alívio e não pesar. Quer anotar meu telefone?

- Não é preciso, eu já tenho o telefone da sua casa.

- Já? Ah, tinha esquecido: negócios, amizades... Sabe até que eu morava com tio Plínio, não é?

- Claro que sim. Mas vamos que o enterro já vai sair.

E foram. Sérgio, com um ar consternado, mas sem óculos escuros, segurou uma das alças do caixão. Suzana, esperta como sempre, notou interrogações e espantos nos demais presentes, mas não conseguiu traduzir sua sensibilidade em conclusões. Achou que ele era desconhecido da maioria dos parentes e amigos. Era realmente um enigma que talvez pudesse ser resolvido no jantar sugerido por ele.





Foram quatro dias, os depois do enterro, de muita parentada, amigalhada e vizinhalhada a querer fazer companhia para a viúva. Suzana era o tédio em pessoa. Tirou uma semana de folga no emprego para ficar em casa dando atenção à Tia Clotilde, mas o que realmente fazia era servir cafezinhos em profusão. Não agüentava mais. Os tios viviam de maneira simples não por avareza, mas por discrição, e por isso não tinham empregados. O falecido detestava a idéia de ter algum estranho morando com ele. Dizia que não queria a intimidade da família aberta a visitação pública, e como Clotilde ainda tinha bastante saúde, cabiam a ela todas as funções domésticas, às vezes divididas com Suzana, que sempre reivindicava a contratação de uma empregada para ajudar na casa. Plínio sempre foi inflexível nesse assunto e Clotilde dizia amém.

De vez em quando Suzana lembrava de Sérgio e do jantar prometido, mas nada que a fizesse sonhar. “Foi só uma paquerinha”, pensava.

Às oito e meia da noite do quarto dia, Suzana tomava banho após a última visita do dia ter saído. Sua tia já estava confortavelmente acomodada na sala ao lado da irmã que tinha vindo de São Paulo para passar “uns diazinhos” acompanhando a viúva. Ambas aguardavam distraídas o início da novela, quando toca o telefone.

- Tia, atende aí! – Grita Suzana do banheiro.

Clotilde, já meio surda e em clima de novela, acorda das divagações de praxe, atende e logo desliga.

- Era pra você! – Grita ela de volta – Um tal de Sérgio que disse que liga daqui a dez minutos!

Enquanto falava, andou até o banheiro e abriu a porta.

- Quem é Sérgio? – Pergunta em tom quase ameaçador.

Suzana abre a porta do boxe mostrando o rosto ensaboado e responde:

- Ué... Pensei que o conhecesse. Lembra de um cara de cabelo grisalho que segurou uma das alças do caixão do titio?

Clotilde benzeu-se e disse:

- Plínio, Deus o tenha em bom lugar... – E continuou – Lembro sim, mas não o conheço. Quem é ele?

- Eu também não sei! Esperava que a senhora soubesse, porque ele disse que tinha negócios e amizades com titio. Sabe até nosso telefone...

Clotilde benzeu-se de novo.

- Deus o tenha em bom lugar, Plínio... Coisa estranha... O que ele quer com você, afinal?

- Não sei, titia. Ele disse que me contaria tudo num jantar.

- Jantar? Mas se você nem o conhece, como é que vai jantar com ele?

- Ai, tia, eu já tenho 32 anos e sei muito bem o que faço. Vai dizer que a senhora não está curiosa para saber quem é ele?

- Estar, estou, mas...

- Pode confiar na sua sobrinhazinha, titia. Agora me deixa acabar de tomar banho senão ele telefona e eu ainda estou aqui. E deixa que eu atendo, vai ver sua novela.

Clotilde benzeu-se mais uma vez e voltou para a sala resmungando.





- Estou saindo, vocês vão ficar bem?

Suzana estava mais linda que nunca.

- Mas é hoje? Não é muito tarde, minha filha? Eu estou com um pouco de dor de cabeça...

- Não é tarde e tem aspirina na gaveta da cômoda. Quer que eu pegue?

- Não, se eu piorar eu tomo. – Respondeu Clotilde de cara amarrada.

- Então tá. Você vai ficar bem com a Tia Rosa. Qualquer coisa, liga pro meu celular, eu não vou muito longe daqui.

Numa última tentativa, Clotilde pergunta:

- Filha: não é muito cedo para se divertir? Afinal faz só quatro dias da morte do Plínio. Que Deus o tenha em bom lugar... – E benzeu-se outra vez.

- A gente já sofreu muito durante a doença, titia. Eu preciso espairecer e, de mais a mais, um jantar com um senhor distinto não é nenhuma diversão que possa desabonar a tristeza que sentimos.

Tia Rosa dá o ar da sua graça:

- Deixa ela Clotilde! A gente vai ficar bem aqui. Vai, minha filha.

- Valeu, tia. Antes da uma eu estou de volta.

Suzana beijou as duas na testa e foi, enquanto a viúva se benzia.

Enquanto esperava no portão da agradável vila de casas em Botafogo, um friozinho na barriga a incomodava. Era um misto de ansiedade, apreensão e perspectiva de tesão, afinal fazia tempo que ela não transava.

Nem cinco minutos de espera e Sérgio aparece a pé. Os olhos de Suzana brilharam: estava ainda mais bonito que no dia do enterro do tio. Faziam um par esteticamente impecável.

- Vamos? – Perguntou Sérgio secamente, sem nem ao menos cumprimentar Suzana.

- Boa noite se usa, né seu Sérgio!...

- Meu Deus, perdão! Boa noite.

Pegou a mão de Suzana, beijou com carinho e continuou a se desculpar:

- Eu tenho tanto medo de ser assaltado que acabo esquecendo a educação, desculpe.

- Você já foi assaltado?

- Não, nunca.

Sérgio parecia meio estranho aquela noite. Alguma coisa que Suzana não sabia explicar bem o que era, um nervosismo, um medo exagerado, sabia lá? Mas esqueceu logo assim que a Mercedes negra parou bem em frente a ela e um sorridente chofer paramentado prontamente lhe abriu a porta.

- Obrigado. – Disse ela.

E entrou no carro. Sérgio deu a volta, entrou pela outra porta e falou ao chofer:

- Vamos Chico.

- Vaomos aonde? – Perguntou Suzana.

- Desculpe de novo. – Emendou Sérgio ainda parecendo afobado – É que eu estou tão habituado a sempre ir ao mesmo lugar, e sozinho... Quer ir ao Antiquarius?

- Claro! Mas Sérgio, você tá tão nervoso... O que é? Você é casado? Tem namorada?

Suzana era rápida e direta e, pela primeira vez aquela noite, arrancou um sorriso de Sérgio.

- Não, não... É que o que eu quero falar é meio embaraçoso.

- Ai meu deus, continua esse mistério? Fala logo, homem!

- Mais tarde, com um bom vinho, e a sós. – E Sérgio apontou discretamante para o motorista.

- Ah, tá...





Devidamente instalados depois dos salamaleques de praxe por parte do métre, Suzana e Sérgio já conversavam animadamente sobre amenidades, bebericando um bom Porto White seco.

- Não conhecia vinho do Porto branco. E eu sempre pensei que Porto se bebesse após as refeições.

- O branco seco se usa antes porque é excelente para acompanhar entradas. Desperta o apetite e estimula a salivação. Realmente é pouco conhecido aqui. – Explicou Sérgio sem a afetação habitual de quem fala de vinhos.

- Bom, agora fala. – Disparou Suzana.

- Sabe que você é muito bonita? – Perguntou Sérgio tentando descoversar ao mesmo tempo que tomava a mão de Suzana entre as suas.

- Não me enrola! – Disse ela ao mesmo tempo que recolhia sua mão presa – Você já fez muito mistério, agora fala!

Vendo que não iria conseguir adiar por mais tempo a revelação, Sérgio começou devagar:

- Você é exatamente como seu tio Plínio descreveu: decidida. E é esse o ponto que me preocupa. Um julgamento precipitado do que tenho a dizer pode acabar mal. Promete que vai pensar bem sobre o assunto antes de tomar qualquer atitude?

- Não prometo nada! – Exclamou ela sem pestanejar e já meio irritada – E fala logo!

- Calma. Eu e o Plínio nos conhecíamos há muito tempo. Eu acho que eu tinha uns 17 anos quando fui trabalhar para ele na padaria lá da Marquês de Abrantes.

- Ué... Trabalhou com ele? E em padaria?

- Sim, por que o espanto?

- Você não parece... Sei lá! Não combina.

- Com a minha aparência hoje? É isso?

- É.

- Eu chego lá. Eu entregava pão e tudo o mais na casa dos fregueses. Seu tio logo simpatizou comigo, eu com ele e deu-se o caso.

- Caso, Sérgio?

- É... Tivemos um caso até ele morrer, praticamente.

- Você não presta! E eu que vim aqui pensando que era coisa séria. Seu cafajeste! A troco de que você fez isso comigo?

Suzana estava encolerizada. Falava baixo, pois que não era dada a escândalos, mas estava roxa de raiva.

- Calma, deixa eu te mostrar umas fotos...

- Que calma, que fotos que nada! Eu vou embora!

E, antes que ela levantasse, Sérgio pôs na mesa uma foto que devia ter uns 5 anos, com ele e o tio Plínio abraçados em meio a montes de neve e disse:

- Lembra da última viagem que seu tio fez antes de ficar doente?

- Pára com essas mentiras! Tio Plínio foi com tia Clotilde para Portugal. Isso é montagem!

E ele virou a foto mostrando o verso, onde se lia: “Ao meu amado Sérgio com um beijo do seu Plínio”. Suzana ficou pasma. A letra era, incontestavelmente, do seu tio, isso ela conhecia bem, pois o ajudava nas escritas.

- Mas... E tia Clotilde? Foi ela que tirou a foto? Não posso acreditar no que li...

Suzana estava tonta. Sérgio respondeu:

- Não, ela ficava sempre em Portugal e nós viajávamos.

- Mas ela te conhecia? Ela sabia?...

- Não me conhecia, nem nunca me viu, a não ser no velório. E ela sabia que seu tio era... era...

- Bicha?

- Eu não diria isso. Eu tenho cara de bicha? – Perguntou Sérgio.

Suzana já mais calma:

- É... Até que não... Mas afinal de contas, a troco de que você resolveu me dizer isso? Não podia ter ficado calado e me poupar desse desprazer?

- É que tem mais uma coisinha...

- Putz! Só falta dizer que tia Clo é sapatão!

- Não, claro que não! – Respondeu Sérgio já sorrindo de novo com a bobagem de Suzana – É que o Plínio deixou metade dos bens dele para mim. O inventariante já procurou vocês?

- Eu sabia! Quer saber de uma coisa? Enfia essa grana onde você mais gosta e me deixa em paz! Metade do que ele tinha já serve e sobra.

Suzana ia se levantar mas foi contida por Sérgio:

- Eu não quero a minha metade. Foi por isso que perguntei se vocês já conversaram com o inventariante. Ele tem a autorização por escrito da minha renúncia aos bens. E foi por isso também que quis conversar com você. Seu tio patrocinou meus estudos e hoje, graças a ele, tenho minhas firmas e meu patrimônio bem razoável.

- Tô perplexa! É muita coisa pra uma noite só! E olha só, o tal do Porto White já foi todinho... Primeiro eu me empolgo com um cara maduro, achando que ele ia dar conta do recado, depois discubro que ele era namorado do meu tio que eu nem desconfiava que era viado...

- Suzana!...

- ...Depois o cara herda uma grana, nem dá bola e devolve prá mim. É prá enlouquecer!

- Não acha que já bebeu demais? Quer pedir a comida? – Disse Sérgio preocupado.

- E você acha que se eu estivesse sóbria ainda estaria aqui?

- Não sei... Mas você falou uma coisa que me interessou.

- Que foi?

- Você se empolgou por mim?

- Ih! Isso foi antes de você dizer que era vi...

- Suzana!... Pára! Quer fazer uma tentativa? Você é tão bonita e eu tão sozinho...

- Heim? Você tá me cantando, é isso? Surtou? Teve recaída?

- Estou falando sério. Nunca tive nada com ninguém a não ser o Plínio. Vamos tentar...

- Nem com mulher?

- Nada. Me senti tão atraído por você que cheguei a pensar em não falar, mas no fim das contas, você ia descobrir, e seria bem pior.

- Bom, como você não é de se jogar fora e eu estou meio alta, faz o que quiser. Afinal, titia viveu com uma biba tanto tempo... Só não garanto amanhã, quando o efeito do vinho acabar. Combinado?